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A ÚLTIMA ILHA
 
Cid Seixas


— “Devido ao meu precário estado de saúde e à terrível depressão emocional que me impossibilita de continuar a escrever e a lutar pela liberdade de Cuba, estou pondo um fim a minha vida. Nos últimos anos, mesmo me sentindo muito doente, pude terminar minha obra literária, na qual trabalhei por quase 30 anos. Deixo-lhes pois como legado meus terrores, mas também a esperança de que em breve Cuba será livre. Sinto-me satisfeito por ter contribuído, mesmo que modestamente, pelo triunfo desta liberdade. Ponho fim a minha vida voluntariamente porque não posso continuar trabalhando. Nenhuma das pessoas que me cercam estão comprometidas nesta decisão. Só há um responsável: Fidel Castro. Os sofrimentos do exílio, a dor de ter sido banido, a solidão e as doenças contraídas no desterro — certamente não teria sofrido isto se pudesse ter vivido livre em meu país.
 
Conclamo o povo cubano, tanto no exílio quanto na ilha, a seguir lutando pela liberdade. Minha mensagem não é uma mensagem de derrota, mas sim de luta e esperança.”
 
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Reinaldo Arenas deixou este bilhete ao se  suicidar, em dezembro de 1990, quando a AIDS tinha destruído as suas forças e, em Nova Iorque, tentava fazer ouvir a sua voz de dissidente do regime castrista. É este texto que fecha o volume Antes que anoiteça, reunindo dezenas de capítulos escritos ao longo do seu exílio. Trata-se de um livro de memórias projetado desde quando ainda morava em Cuba. A primeira versão do texto se perdeu, tendo o autor retomado, no exílio, a escrita de um novo livro com o mesmo título.
 
Após percorrer as suas 300 e tantas páginas, o leitor sai contagiado pela perspectiva de um escritor poderoso e convincente. Bem verdade que a escrita de Reinaldo Arenas entrelaça ao domínio da linguagem e da narrativa alguns lugares comuns, resultantes de um texto possivelmente escrito de um só fôlego, quando a emoção substitui  a reflexão e o artesanato.
 
E não poderia ser de outro modo. Muitos dos capítulos ou episódios do livro foram escritos durante as crises provocadas pela doença, quando Arenas trabalhava desesperadamente, com o objetivo de concluir não apenas esse livro de memórias, mas de rever os demais.
 
A introdução de Antes que anoiteça foi escrita quando o autor já tinha concluído todo o seu trabalho. Aí, com uma lucidez impressionante, ele sintetiza o percurso e desvela a estrutura do projeto.
 
Um dos objetivos visados é a denúncia da falta de liberdade em Cuba. O clima de medo e insegurança vivido pelos seus intelectuais e por todo sujeito pensante que ousa ultrapassar os limites concedidos pelos donos da verdade. O confronto, estabelecido no livro, da ditadura de Fidel com uma ditadura de direita, a de Pinochet, mostra que a falta de liberdade, tanto em nome do comunismo quanto do capitalismo, servem apenas àqueles que estão no poder. O povo paga o preço das delações e crueldades, que se tornam infinitamente mais fortes, em regimes onde as liberdades e direitos são suspensas. Para aqueles que julgam seus valores mais legítimos que os demais, todos os fins justificam os meios.
 
Não esqueçamos que, quanto mais marcado pela miopia das emoções e pela certeza de ter alcançado a verdade mais cristalina, o animal humano se torna menos racional do que os demais.
 
A eficácia do discurso de Arenas é sentida quando mesmo nós, cidadãos da América Latina, que vivemos uma história parecida com a do povo cubano, percebemos que o emprego da força repressiva não é o caminho para a liberdade. Histórias parecidas mas diferentes, apenas, porque de ambos os pontos de vista se acreditava que para manter o socialismo, de um lado, ou o capitalismo do outro, o respeito à diversidade era o que menos importava. Ou melhor, todos entendemos como Cuba se viu empurrada para uma nova ditadura, na época apoiada por Moscou, porque não tinha saída. Os Estados Unidos sempre se consideraram donos não apenas do continente, mas do mundo, não hesitando em interferir, invadir ou exterminar qualquer nação em nome da “liberdade”. Triste é a história de vários países do continente, quando a autonomia e a dignidade de um povo são anuladas sob uma poderosa intervenção militar. A Rússia, por seu turno, ao construir uma União Soviética encontrou o caminho para disputar a primazia imperial com os Estados Unidos.
 
A última ilha de liberdade, acenada por Fidel Castro, foi um possível paraíso para o nosso pensamento, sempre em busca de voos e utopias. Mas para o homem do campo, nascido em Cuba, Reinaldo Arenas, a realidade se apresentou de um modo oposto e bem mais perverso.
 
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Cabrera Infante vê neste livro póstumo de Arenas "um rústico talento que quase alcança a genialidade". Tomando um dos pontos explorados redundantemente, ele chama atenção para a obsessão pelo sexo presente na vida e na obra do autor. É o próprio narrador dos episódios que constituem Antes que anoiteça quem nos fala da sua voracidade sexual. Suas aventuras sexuais, vividas, às vezes, em um único dia com diversos parceiros e em diversos lugares, num desvario contado de modo direto e confessional, dão conta do predomínio do sexo sobre a política e a literatura, dois caminhos outros na vida de Reinaldo Arenas.
 
Muitos dos episódios do livro são apenas relatos de um homossexual marcado pela crise e pelo desespero. Relatos perpassados de naturalismo e forte poder narrativo que nos põem diante de um escritor, ao mesmo tempo, em estado bruto e com frases e situações lapidares.
 
Para o leitor comum, que busca não apenas um libelo antimachista, mas um texto bem escrito, muitos episódios de Antes que anoiteça interrompem o fluxo de tensão e força do livro. Mas, logo adiante, o autor reconquista o espaço, narrando com maestria os sofrimentos e angústias de um homem em busca da liberdade mais plena e absoluta. Se quisermos resumir numa só frase todo o grito proferido por Reinaldo Arenas, antes que a terrível noite se fizesse, esta frase teria que dar conta da mais desesperada busca da liberdade — porque de uma liberdade sem fronteiras, impossível.
 


A última ilha. Artigo crítico sobre o livro Antes que anoiteça, de Reinaldo Arenas. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 9 jan. 95, p. 7.


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no mês de outubro de 2016. Última atualização desta página: março de 2022.
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