Por volta do ano de 1968, o maestro Carlos Lacerda sentou-se ao piano e tocou uma música que acabara de compor, dizendo que se chamava "Menina de trança em dia de sol". Perguntei por que esse título e ele disse que não sabia, mas, ao compor, foi a imagem que lhe ocorreu.

Nessa época, eu tinha deixado o trabalho, há pouco tempo conquistado, como repórter do Diário de Notícias e colunista do jornal Estado da Bahia para apresentar dois programas semanais na TV Itapoan. Embora gostasse muito da atividade no jornal, a televisão pagava por programa apresentado bem mais do que eu recebia para escrever nos dois jornais; o que me permitiu comprar o tão sonhado primeiro carro, um Renault Gordini azul de segunda mão.

As músicas compostas pelo talentoso maestro obedeciam a uma sequência melódica fácil de ser associada a uma sucessão de fonemas da nossa fala. Assim, criar uma letra a ser igualmente associada a essa música era uma tarefa intuitiva e agradável, o que permitiu que nos tornássemos parceiros em algumas composições. Confesso que esqueci letras e músicas delas, mesmo as poucas que foram gravadas.

Como gostei de imediato da melodia de "Menina de trança em dia de sol", que ele tocara com doçura, pedi para mostrar de novo e, encantado com o que ouvia, cantarolei desafinadamente, pois não consigo, nunca, jamais, em momento algum, afinar a voz.

Assim, comecei a colocar uma letra na música do maestro e amigo:

                    "Correndo horizontes desfeitos
                    Além da distância do nunca chegar
                    Lá vem a menina de trança
                    Trazendo esperança, num dia de sol."

Mas só terminei de fazer a letra e encontrar a forma definitiva alguns dias depois. Lembro que foi com esta composição que participamos como finalistas de I Festival Nordestino de Música Popular, realizado no Recife, ocasião em que tivemos a oportunidade de conhecer o velho Capiba, um dos grandes expoentes musicais do país. Desde criança, eu admirava os frevos e outras músicas do pernambucano Lourenço da Fonseca Barbosa, seu nome de pia; e não perdi a chance de confessar a antiga admiração, numa conversa amena. Foi aí que fiquei sabendo que o sublime apelido Capiba quer dizer, nas bandas lá, "jegue teimoso da peste". Convém lembrar que a conhecida música "Maria Bethânia" é uma das muitas composições de Capiba. Segundo Caetano Veloso, foi ele quem escolheu o nome da irmã recém-nascida, por gostar muito da canção.

Passados tantos anos, do final da década de sessenta para cá, eu nem me lembrava mais desses fatos, quando um conhecido me enviou pelo WhatsApp, agora no final do mês de maio de 2021, a gravação desta música feita pelo Inema Trio, em 1969, para o LP do Festival. O arranjo da gravação, com uma orquestra pernambucana, não tem a doçura e o encanto da versão original, interpretada ao piano do seu criador. Lacerda, tocando qualquer coisa no seu instrumento, tinha um modo muito pessoal e cativante de transmitir as sugestões melódicas. Tudo que ele tocava ao piano revelava seu modo de ser, suas inquietações e seus desejos.

Para não perder, de novo, em meio às lembranças esquecidas, mais um dos muitos acontecimentos antigos, faço aqui este registro, anexando o link recebido da gravação de "Menina de trança em dia de sol". Para ouvir, clique aqui.

Por fim, visando repartir a emoção de lembrar Lacerda ao piano, estão disponibilizadas também as músicas tocadas por ele, no seu velho LP de 1963, que só vim conhecer anos mais tarde, quando me tornei seu amigo e recebi um exemplar de presente. Aproveitando o ensejo, vejamos também o documentário sobre o Maestro feito pelo médico e cineasta amador Paulo Sá Vieira; além do registro de lançamento do livro biográfico de Maria José Quadros intitulado Carlos Lacerda, um piano da Bahia.
(Cid Seixas)

Assista ao documentário de Paulo Sá Vieira clicando acima

     

       

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