|  Abertura  |  Leitura Crítica  |  E-Books  |  Livros Impressos  |  Cronologia: Textos  |  Destaque  |  Autores Escolhidos  |  Sobre o Autor  |
 
JACINTA PASSOS: INÉDITOS
recolhidos por
Gil Francisco
























































 




PASSOS E PERCALÇOS

Cid Seixas

Gilfrancisco, o incansável pesquisador de fontes dos documentos da nossa memória cultural, telefona eufórico para informar que tem em mãos alguns textos de Jacinta Passos, localizados nas suas pesquisas na Biblioteca Nacional e em outros arquivos por ele esmiuçados. Alguns dos nossos ex-alunos e orientandos de mestrado e doutorado já se valeram do acervo desse autêntico sergipano nascido na Bahia. Sempre generoso e disponível, Gilfrancisco divide com todos que lhe procuram o fruto do seu bendito trabalho de quase meio século.

Meu primeiro contato afetivo com a obra de Jacinta Passos se deu na década de setenta do século passado, após a morte da autora. Em Cruz das Almas, conheci o poeta Luciano Passos, que me falou com entusiasmo de fatos envolvendo a vida, árdua e tumultuada, dessa figura enigmática das nossas letras. Anos depois, uma ex-aluna do Instituto de Letras da UFBA, Dalila Machado, iniciou sua pesquisa acadêmica da obra de Jacinta, que resultou no livro A história esquecida de Jacinta Passos, publicado somente no final do século XX.

Trata-se de uma das escritoras brasileiras cuja vida permaneceu, por certo tempo, envolta em mistérios e indefinições. Militante ativa do Partido Comunista Brasileiro, ao lado de Jorge Amado e outros intelectuais de destaque, seu segundo livro de poesia constituiu um importante acontecimento. Observe-se que Canção da partida, de 1945, foi publicado em São Paulo através do selo das instigantes Edições Gaveta, com cinco desenhos de Laser Segall e alguns exemplares especiais contendo trabalhos exclusivos do consagrado artista; conferindo-lhes a condição antecipada de raridade bibliográfica.

Tendo estreado em 1942 com o volume Nossos poemas, ao lado do irmão Manuel Caetano Filho, Jacinta Passos publicou, além da obra de 1945, Poemas políticos, em 1951, no Rio de Janeiro, pela Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, e o épico A Coluna, narrando em versos os acontecimentos da emblemática Coluna Prestes.

O livro Canção da partida foi marcado por um fato hoje histórico e consagrador: o crítico Antonio Candido publicou na sua conceituada coluna do Diário de São Paulo, do dia 13 de dezembro o artigo intitulado “O poeta e a poetisa”, traçando um paralelo entre a criação da autora baiana e a do pernambucano João Cabral de Melo Neto, depois considerado a figura maior da chamada geral de 45.

A publicação mais representativa, dando conta da vida e da obra dessa poetisa –nascida em 1914 e morta em 1973 – saiu em 2010, organizada pela filha da autora, a historiadora Janaína Amado: Jacinta Passos, coração militante (poesia, prosa, biografia, fortuna crítica).

È também de Janaína um dos documentos afetivos de maior impacto, velando, sem revelar, acontecimentos cuidadosamente guardados na memória. Foi escrito há muitos anos e publicado em 15.05.2013, no dia das mães. E Janaína confessa: “A saudade que sinto dela não passa, é saudade do que foi e saudade do que poderia ter sido.”

Esse texto pode ser lido logo em seguida, além de dois poemas e de um artigo recolhidos em páginas perdidas nas prateleiras e arquivos dos tempos passados...

 
Ver, entre outros:

http://jacintapassos.com.br/cronologia/

http://passosdejacinta.blogspot.com/



   



















     
Jacinta Passos e James Amado, 1944.




   
A MENINA E A MÃE


Janaína Amado

Quando a menina pequena abre os olhos de manhã cedo, pergunta logo Cadê mamãe? Neste dia não tem resposta. Nunca mais terá resposta a essa pergunta. Mazi disfarça, diz que a mãe foi ali e volta já, mas o dia inteiro se passa e a mãe não volta. Irritada, inquieta, a menina não consegue brincar, chora, não tem apetite: Não quero comer esta porcaria!, joga o prato em cima de Mazi.

 A menina percebe que alguma coisa está profundamente errada. Não sabe o que é, porém seu corpo alerta indica o perigo a rondar. Precisa da mãe ali para protegê-la, defendê-la. Chama por ela, chora por ela, mas desta vez a mãe não está ali junto, sumiu. Muito confusamente a menina intui que o problema é a mãe, a mãe é o problema, mas não entende, e chora.

 Quando o pai enfim volta para casa, a menina voa em cima dele. Pula em seu pescoço, ansiosa: Cadê mamãe? Ele a põe no chão. A menina percebe que o pai não olha para ela, o olho dele está saindo pela janela, longe. Parece muito cansado, o seu pai. Cadê mamãe, cadê mamãe?, insiste. A resposta chega como surra:

 — Mamãe está doente. Vai precisar ficar no hospital.

 Doente? Mas mãe não fica doente! Pela primeira vez, o pai sorri. "Fica, sim. Lembra quando ela sentiu aquela dor de garganta e teve de ficar na cama? Estava doente." Mamãe tá com dor de garganta? Não. Tá com dor de dente? Não. Com dor de olho? De nariz? Andando atrás do pai, a menina vai repetindo a mesma pergunta, com a troca da última palavra. Não estava nem na metade da sua lista de partes do corpo, quando o pai dá um berro: "Chega! Me deixa em paz!" tão súbito e alto e aterrador que a menina escorraçada dispara rumo à cozinha, vai chorar no colo de Mazi.

 Nesta noite, ela consegue dormir só muito tarde, depois de Mazi cantar o Sapo Cururu várias vezes e seus olhinhos se fecharem de exaustão.

 Sonha com a figura forte da mãe ao seu lado, as duas caminhando juntas pela rua clara de sol, uma brisa que vem do mar levantando os cabelos delas, a sua mãozinha protegida dentro da mão firme da mãe. Ela observa admirada aquela mãe tão bonita, alta, elegante, empinada. Ri pra ela, de pura satisfação. Com mamãe, eu não tenho medo de carro. Não tenho medo de cachorro. Nem medo de sumir na multidãoNem medo de esquecer o caminho de casaMamãe sabe. Mamãe conhece todos os caminhos. Mas no sonho então a mãe se vira para ela, rosto sério, e diz:"Estou perdida. Não conheço mais os caminhos."

 A partir daí a vida da menina vira confusão barafunda anarquia desarranjo, ela aos trambolhões de uma casa pra outra, o pai o tempo todo no trabalho ou no hospital, Mazi dando adeus e indo embora, um monte de gente estranha em volta, seu mundo de ponta-cabeça, todas as coisas, todas as pessoas fora de lugar, pesadelo.

 A menina pergunta a cada hora Por que mamãe tá demorando tanto? Ninguém sabe lhe responder. "Como contar a uma menina pequena que sua mãe ficou doida?", pensam. Quando mamãe vai voltar?, insiste. Ninguém conhece a resposta.

 À hora de dormir, no escuro, a menina passa devagar a ponta da fronha no rosto, enquanto pensa perguntas que não tem coragem de dirigir aos outros: Por que mamãe não me disse aonde ia? Por que não me deu adeus, beijo, nada? Por que ela me deixou aqui sozinha?

No dia seguinte, retorna à pergunta habitual: Quando a mamãe vai voltar?

 Aquela mãe nunca voltou.

 A mãe que sabia todos os caminhos nunca voltou.

 A filha não a esquece. Como poderia, se a vida inteira tem caminhado ao seu lado na rua clara de sol, passo a passo com a silhueta sem carnes, com a evocação do vulto esbelto, elegante, altaneiro, a vida inteira assombrada pela convivência íntima com o enigma, com a ausência gigantesca que entretanto misteriosamente ainda é capaz de lhe indicar caminhos?

  

   
 








   
Aqui estão três textos dispersos de Jacinta Passos,
recolhidos por Gil Francisco
    














A VOLTA

Jacinta Passos

Vigia os ventos do mar marinheiro!
- Eu nasci naquelas terras
Que nunca viram este mar.
 
Um dia meu pai disse:
Vai menino
Rebelde ah! deixa estar,
Escola de pobre é marinha,
Aprende o jogo do mar.
 
Antônio! José! Berilo!
Vigia os ventos do mar!
 
Tua gente está falando: para onde?
Para onde vão te levar?
 
- Na marinha, dura liça
Muito bravo conheci.
 
Meu avô sempre contava
A história que conto aqui.
 
Era o tempo do chicote
Surrando marujo até
 
Deixar caído no chão
Mas um dia um batalhão
Bradou:
Marujo escravo não é!
 
Um negro então comandou.
 
Mil novecentos e dez.
Oh! Água de Guanabara
Quanto mistério guardou,
Muita cabeça cortada
Por seu crime então pagou.
O gume das machadinhas,
Oficiais, degolou.
A boca de dez canhões
À cidade ameaçou.
Logo o governo fugiu,
João Cândido ganhou.
 
Tempos depois numa ilha
O governo se vingou,
Duzentos marujos vivos
E bravos, ele queimou.
 
Ilha das Cobras!
Este nome nos ficou
Desta história de marujo
Valente e bom, com eu sou
Vigia os ventos do mar, marinheiro!
Antônio! José! Berilo!
Vigia os ventos do mar!
 
Tua gente está falando: para onde?
Para onde vão te levar?
 
Segues rumo da Coreia? Marinheiros?
Vigia os ventos do mar!
Aqui te espera a morena
Dos olhos cor de avelã.
Vigia: será o porto de Santos
Ou dunas de Itapuã?
 
Tua gente está falando: para onde?

Por trinta milhões de dólares,
Os gringos vão te levar.
O coreano e trigueiro.
Feito eu e tu, marinheiro.

Marinheiro volta o leme
Vigia as ondas do mar.
Aqui te espera teu povo,
A casa é tua. Podes entrar.
Os gringos governam a casa,

Tu és um homem, não curvas à frente,
Por isto deves voltar.

Antônio! José! Berilo!
Vigia os ventos do mar!


(Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1951)
















 
 
OS MUROS

Jacinta Passos


Minha cidade tem muros

De pedra, cimental e cal.

Tem muros que são tribunas

Painéis, cartilhas e coral.

 

Quem de noite faz as letras

Que aparecem de manhã?

Será a mão do poeta

Ou a mão da tecelã?

 

Viva Luiz Carlos Prestes!

O petróleo é nosso!

Fora com os americanos?

 

A polícia apaga e as letras

Aparecem de manhã.

Será a mão do poeta

Ou a mão da tecelã?

 

Minha cidade tem muros

Brancos, cinzentos, de cores

Riscos de piche e carvão

Ó pintores, vinde ver.

 

Vinde ler a História escrita

Nos muros, cada manhã.

Será a mão do poeta

Ou a mão da tecelã?

 São Paulo, 1958.

(Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 25 de julho de 1959)












   

A SOLUÇÃO ESTÁ NAS MÃOS DO POVO



Jacinta Passos



    O movimento nacional pelo petróleo não é apenas um simples movimento de opinião pública. É um movimento de opinião, mas é também de paixão, é um movimento de raízes instintivas porque está ligado aos interesses vitais de cada brasileiro.

        Por que a questão do petróleo interessa pessoalmente a cada um de nós? Porque com a exportação do petróleo pelos brasileiros se torna possível a libertação econômica do Brasil, isto é, se torna possível um maior progresso que permita melhores condições de vida para cada um de nós. Isto interessa a todos, homem ou mulher, seja branco, negro ou mestiço, pobre ou rico, seja católico, ateu, protestante ou espírita, seja comunista ou não comunista. Provando essa verdade que acabamos de afirmar, estamos vendo reunidos para a defesa do petróleo homens das mais diversas condições sociais, o ex-presidente Bernardes, o Coronel Carnaúba general Horta Barbosa, os estudantes, os industriais, as mulheres, os operários, os jornalistas, Osório Borba, Corrêa de Oliveira, Matos Pimenta.

        Diante do problema do petróleo, diante da ameaça de entrega de nossa riqueza maior as Campanhas americanas, diante da ameaça que representa o “Estatuto do Petróleo” na Câmara, o brasileiro de hoje se vê colocado, como tantos brasileiros de ontem, diante do fato seguinte: defender o que é seu ou perder um bem, o chão livre da Bahia, a oportunidade de progredir como povo, desistir de sua própria independência.

        Foi numa situação igual que outros brasileiros, há mais de um século, resolveram lutar para que o Brasil não fosse mais colônia de portugueses ou colônia de americanos, qual a diferença?

        A consciência desse perigo que nos ameaça, a consciência da oportunidade de progresso que está guardada nas terras curvas do Recôncavo baiano, era o que precisamos levar a cada brasileiro. É uma causa tão justa e tão vital que se comunica como uma centelha capaz de acender as multidões. Não adiantaram as sutilizas dos que defendem a entrega do nosso petróleo, a questão é uma questão de vida ou de morte para nossa pátria.

        Colocar o problema como se fosse alguma coisa acima do homem comum, alguma coisa que só os capitalistas são capazes de entender, é uma das formas de confundir. Claro que as soluções técnicas só poderão a compreensão geral do problema dada pelos técnicos, mas uma, essa é accessível a qualquer um brasileiro.

        Então o homem pobre que possui um pequeno sítio e tem um vizinho rico e cobiçoso, ah o bom vizinho quer plantar no seu terreno dizendo que o homem não tem meios, técnicos para semear, dinheiro para comprar sementes, etc., o homem pobre não sabe que os frutos serão do bom vizinho: Sabe sim. E que fazer? Levar a notícia aos outros que também estão ameaçados, fazer uma menos comum contra o inimigo comum. Chegar para o bom vizinho e falar assim: - olhe, moço, a gradecemos de coração os seus préstimos, mas não aceitamos não. O senhor é rico, poderoso, mas a gente se arranja com a prata da casa mesmo. O que é nosso é nosso e até lutar nós topamos em defesa do que é nosso. Há alguns dos nossos que estão contra nós, mas isso não conta eles são minoria. Agora, moço, quando o terreno der os seus frutos, ai sem, se o senhor quiser, podem comprar. E olhe que os frutos serão ótimos, o terreno é bom de verdade. Nisso, acho que estamos de acordo.

        Eis ai, no sentimento do povo, na boca do povo, um problema que é dele. E sua solução virá das mãos do povo.

                (O Momento. Salvador, nº 709, 30 de maio de 1948)