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CID SEIXAS E A DUPLA
VIA DA CRÍTICA Francisco Ferreira
de Lima A crítica de jornal era prática habitual no Brasil
até algumas décadas atrás. Tivesse grande ou pequeno porte — não importava —, o
jornal havia que ter o seu crítico de rodapé, como então se dizia, sem o que
não pareceria completo. Essa difusão generalizada da atividade crítica,
praticada as mais das vezes sem um mínimo da base cultural que tal exercício
demanda, foi quiçá o aspecto preponderante do processo de decadência a que se
viu submetida. Processo que teve o seu desfecho com a chegada de Afrânio
Coutinho dos Estados Unidos, no início dos anos sessenta. Com seu estilo
vigoroso de polemista, o mestre baiano decretou a morte para todo e sempre
daquela famigerada maneira de ler obras literárias, uma vez que, segundo ele,
em nada ela contribuía, pois não possuía elementos para abordar a obra
literária com eficácia. Em seu lugar, assim exigiam os novos tempos, viria
a "crítica universitária", a única legítima, assim se disse então,
visto que sua autoridade procedia não da fama ou importância do crítico, como
se dava naquela outra, mas sobretudo da demonstração "técnica" da
leitura, a qual, para Coutinho, se traduzia na prática do close
reading, o principal fundamento da teoria do New Criticism,corrente
crítica a que se filiara por ensejo de sua viagem à América. Não se pode negar o avanço dessas novas práticas.
Sepultou-se, por exemplo, de maneira definitiva, o "achismo", que
definia o gostar ou não gostar do crítico, sem que este necessitasse explicitar
as razões do seu gosto — ou do seu desgosto. Tornou-se bem mais difícil a
partir de então dizer-se que tal ou qual livro era "uma das mais belas
páginas de toda a literatura". E também o seu contrário. Exigiu-se cada
vez mais razões e demonstrações que justificassem tais assertivas. O resultado
foi a produção de uma ensaística densa e penetrante, que pôs os estudos
literários a par com os discursos mais rigorosos das assim chamadas ciências
humanas. Nem tudo foi tão perfeito, naturalmente. Sem falar
no "psitacismo grafocrático" que contamina uma boa parte das teses
defendidas nas universidades, as quais muitas vezes não passam de um monótono
encadeamento de citações, sem o que o trabalho perde a obrigatória feição
"erudita", a crítica desenvolvida na Universidade quase nunca expõe
seu autor aos riscos inerentes à tarefa de julgar, visto que ele já definiu, a
priori, por razões antes de tudo de gosto pessoal, o seu objeto de
estudo. Confortavelmente acomodado, pois, pelas garantias que o texto escolhido
assegura, o leitor acadêmico, qual um anatomista meticuloso, entrega-se
prazerosa e sapientemente à dissecação do texto eleito. O último romance do escritor já consagrado ou
aquele outro do estreante só residualmente interessam à crítica universitária,
pelas razões já apontadas. Desbaratada e desmoralizada a leitura desenvolvida
no jornal, o público viu-se entregue a uma espécie de orfandade crítica. Perdeu
a mediação fundamental que o crítico promove entre obra e leitor, de um lado; e
não se interessou pelo ensaio especializado produzido na Universidade, por
outro. Pode-se concluir, por conseguinte, que não era necessário matar uma para que a outra vivesse, já que ambas são práticas distintas de leituras. Mas a distinção que há entre elas — é importante marcar — não as faz excludentes, senão complementares, visto que uma pode contribuir muito com a outra. Tais reflexões me vêm a propósito deste Triste
Bahia, oh! quão dessemelhante, o mais recente livro de Cid Seixas. Crítico
universitário refinado, com trabalhos de longo alcance, que abrangem as várias
dimensões da teoria da linguagem, a poesia de Fernando Pessoa, sem esquecer as
incursões pelo trovadorismo medieval ou a literatura brasileira contemporânea,
Cid Seixas não dispensou, ao longo de sua carreira acadêmica, a intervenção
crítica desenvolvida nos jornais. Nele, essas duas modalidades, ao contrário do
que aconteceu no Brasil nos últimos tempos, estiveram fraternalmente unidas,
como se uma fosse efetivamente o contraponto da outra. Como se pode ver pelos textos mais
antigos presentes neste livro, Cid Seixas dá partida à sua dupla atividade
crítica de modo praticamente simultâneo, pois que sua carreira universitária
tem início nos meados dos anos setenta. E tal aspecto oferece bons elementos
para entender seu caminho de analista de literatura. Nessa mesma época,
quando começa a publicar com alguma regularidade nos jornais, Cid Seixas como
que redimensiona a modalidade crítica ali praticada. Ele substitui a ligeireza
de que esta padecia por um denso aporte teórico, pondo assim o grande público
ante as últimas discussões teóricas travadas na Academia. Fortemente influenciado por Umberto Eco e pelos
teóricos da Semiótica, Cid Seixas faz leituras, digamos assim, de vanguarda da
principal produção literária da Bahia nessa época, tal como se pode ler, por
exemplo, em “A semiótica aberta do Abc re-obtido” ou “Código
II: códices do presente”. Vinte anos, algumas teses e duas centenas de textos
depois, Cid Seixas se decide pela crítica regular e sistemática de jornal. Além
de ler com a argúcia de sempre e a competência técnica que a experiência e a
maturidade trouxeram, Cid Seixas continua a fazer avançar os parâmetros da
crítica de jornal. Com uma diferença, porém. Agora já não se trata mais de
citar os últimos teóricos, para atualizar os conhecimentos gerais da província,
mas de sutilmente expor a sua própria teoria da literatura (e da cultura). É
assim que vemos ao longo de muitos artigos, tal qual um trovador ou poeta
palaciano desgarrado no tempo, Cid Seixas clamar pelo prazer do texto, por uma
literatura que agrade e divirta, ao invés dessa que, pretendendo situar-se num
plano "intelectual", não passa de um discurso modernoso e entediante. Acostumado a nadar contra a corrente, Cid Seixas
quer, nada mais, nada menos, ver reinstalada a ludicidade da literatura. Não é
tarefa pequena. Porque, quando se diz lúdico, se quer dizer, Eros sobrepujando Thanatos, ou,
em termos definitivos, a vida vencendo a morte. Ao cobrar a dimensão de gozo que a
literatura pode — e deve — propiciar ao leitor, como fizeram os poetas
palacianos, Cid Seixas não está apenas apontando para o passado, mas sobretudo
— e mais uma vez — para o futuro. E quanto mais trincheira crítica houver para
fazê-lo, tanto melhor. Salvador, junho de
1996
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