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AMADO ECO:

PORQUE JORGE AMADO
NÃO QUIS CONHECER UMBERTO ECO



   

Em meados do ano de 1979, quando concluía o mestrado, na área de estudos linguísticos, tivemos em Salvador uma série de conferências de importantes intelectuais de várias partes do mundo. Desde Michel Foucault a Umberto Eco. A professora Maria Luigia Magnavita foi a responsável pela vinda do italiano. Na véspera da conferência, Dona Gina, como a chamávamos, disse que Eco perguntou se ela me conhecia.

Eu havia escrito duas cartas ao filósofo propondo minha inscrição, como seu orientando de doutorado, na Universidade de Bolonha. Por isso, me  dispus a buscá-lo do hotel, no dia da conferência no Instituto de Letras, e depois a acompanhá-lo nas suas andanças por Salvador. Vieram com ele Renate, a esposa, e os filhos Stephen e Charlotte.

Como sou incapaz de compreender os sons de toda e qualquer língua, inclusive a portuguesa do Brasil, quando falada de forma rápida, a confusão começou quando o pintor Sante Scaldaferri, amigo de ambos, nos encontrou rapidamente e perguntou (acho que, mais ou menos, isso):

– “Allora, Eco, conosci Cid, questo grande pederasta? Leader del movimento gay all’università.”

Fingindo participar do diálogo, assenti, rindo, sem saber direito o que acabara de ouvir:

– “Ãhan!”

No mesmo ritmo de fala veloz e gesticulada, o semioticista respondeu, considerando-me, de fato, um representante baiano do ainda invisível movimento. Sem nenhum hábito de ouvir a língua italiana, não entendi patavinas. Apenas sorri; como quem participa da conversa, e assumi, involuntariamente, a liderança proposta pelo pintor e mordaz humorista nas horas vagas.

Desde o primeiro contato com Umberto Eco pedi para conversarmos em francês, pois ele não sendo falante nativo dessa língua, a velocidade seria a ideal para meus ouvidos moucos. Além disso, os constantes tropeços seriam menos incômodos.

Em 1979, Eco ainda não era o romancista de sucesso internacional, que se tornou, de repente, com a publicação de O nome da rosa, no ano seguinte. Lembro que durante o dia ele me pediu para conhecer monumentos religiosos da cidade. Fomos ao tradicional terreiro da Casa Branca e percorremos algumas igrejas do Terreiro de Jesus e adjacências.

Estranhei quando ele começou a falar coisas para mim confusas, enquanto percorríamos os corredores do convento de São Francisco. Ali ele principiou a monologar em italiano, como se estivesse em transe mediúnico, diante dos mistérios do convento. Aturdido, respondia, ou ousava dizer algo, apenas quando ele me olhava e mostrava alguns detalhes arquitetônicos. Fora disso, assumia o meu costumeiro tom patético e abestalhado, murmurando:

– “Ãhan! Ãhan!”

Como Umberto Eco nada havia revelado a respeito do monumental romance que estava escrevendo, somente entendi o que acontecera quando li, em 1983, a edição brasileira de O nome da rosa. Lembrei do inusitado monólogo associado a algumas passagens do livro.

E o que Jorge Amado tem a ver com toda esta história fiada?

É que Sante Scaldaferri contou a Eco, não sei a que propósito, um episódio engraçado, do qual participamos, ao lado do gravador Calazans Neto, na casa de Jorge. Sabendo do meu contato com o romancista baiano, Umberto Eco disse que gostaria muito de conhecer o autor de Tenda dos Milagres.

Liguei para o Rio Vermelho e soube que Jorge Amado estava uns dias fora de casa, escrevendo, no seu recolhimento em Itapuã. Não sabia onde era a casa, nem nunca estive lá. Tinha, apenas o telefone, que ele havia colocado num dos seus bilhetes para um eventual contato. Liguei todo entusiasmado e disse:

– Jorge, Umberto Eco está aqui em Salvador e gostaria muito de lhe conhecer.

Falei um pouco da obra do pensador italiano. Aí veio o balde de água fria na minha santa ingenuidade. Umberto Eco ainda não representava nada para Jorge Amado, que provavelmente, nem sabia quem era aquele italiano de nome repetitivo: eco, eco, a ecoar.

– Você disse a ele onde eu estou?

– Não. Estou ligando para lhe falar do interesse dele em lhe conhecer.

– Veja, Cid, se eu deixar de escrever para encontrar com os estrangeiros que vêm à Bahia, eu não faço mais nada. Você mora perto e sabe que não tenho paz na nossa rua. Até ônibus de turismo já apareceu por lá, quando a novela da Globo estava no ar.

Como o mundo dá voltas, por volta de 1993, enquanto lia Navegação de cabotagem, falei com Jorge sobre meu telefonema para lhe dizer que Umberto Eco queria conhecê-lo.

Ele, naturalmente, não mais se lembrava de nada disso. Cerca de dez anos se passaram. Estranhou meu comentário, como se fosse uma fantasia ou um delírio. Deveria ter pensado: como um professor da província poderia conhecer o romancista mais discutido do mundo inteiro naquele fim de século; e ter intermediado o fantasioso contato?

Um ano antes de O nome da rosa ter colocado o seu autor no rol dos maiores romancistas de século XX, o nome do outro nada dissera ao grande Jorge Amado. Daí o olvido.

O fato é que, ao ler Navegação de cabotagem, onde ficava evidente a admiração do nosso romancista pelo best seller que impressionara o mundo pela inesperada mistura de qualidade com recursos da cultura de massa capazes de empurrar, goela a dentro do leitor, momentos de requinte e alta especulação intelectual. Somente um erudito de tal porte poderia levar para o território da ficção as mais avançadas descobertas da filosofia da cultura.

Jorge Amado conta no seu livro de memórias que, em 1988, em visita à União Soviética, recebeu a notícia, transmitida por um brasileiro, que ele aparecia no novo romance de Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault.

Assim o fato foi registrado em Navegação de cabotagem:

“Vaidade patriótica a do patrício, que dizer da que me invade? A vaidade não é o meu defeito, sentimento pouco habitual, no entanto a notícia envolve-me de vanglória, sorrio para Zélia.”



UMBERTO ECO



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Este site foi concluído e disponibilizado  no mês de outubro de 2016. Última atualização desta página: março de 2021.
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