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A TIMIDEZ ESCONDIDA
O menino do rio ficou na infância em Nagé. Mas
guardou memória de tudo que viu e testemunhou. Aqui se recompõe, sem barba e sem
óculos de grau, mas num carrinho de pedalar. Um sonho por realizar, o de ser
locutor de rádio, mas conheceu a popularidade pela televisão. Levou Humberto
Porto e Assis Valente para o Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da
Bahia: era a primeira vez que a música popular brasileira entrava lá e pela mão
de um quase adolescente. Alguns livros na bibliografia, poemas. Mais de uma
dezena de músicas gravadas. Agora, de óculos de grau e barba, professor
universitário, com tudo a que tem direito: Mestrado em Língua Portuguesa,
Doutorado em Filosofia da Linguagem. Com a palavra, Cid Seixas. Talvez ele
ainda guarde a timidez que era do menino do rio.
UM INCERTO COMPLEXO
DE INFERIORIDADE
Guido – Nome completo.
Cid – O mesmo que
comecei assinando no início da minha carreira, ou seja, Cid Seixas Fraga Filho.
Mais recentemente, eu o resumi para Cid Seixas.
Guido – Data de
nascimento.
Cid – 4 de janeiro de 1948. Nasci
na Vila de Nagé, no município de Maragogipe, Bahia. Minha infância foi dividida
entre Nagé e Maragogipe. Na época, minha mãe era professora primária em Nagé e
lá morei durante algum tempo. Depois, meus pais se mudaram para Maragogipe,
onde comecei a frequentar a escola, mas, nas férias, voltava sempre a Nagé.
Guido – E o melhor de
sua infância onde foi?
Cid – Foi em Nagé. Lá moravam os
meus primos e nós brincávamos muito, principalmente no rio. O rio foi uma
experiência muito plena, muito íntima com o mundo ao redor. Foi quando me senti
mais livre, mais solto, mais menino. Então o rio tem, para mim, esse
significado. O rio, dentro de minha vida, significou liberdade. Minha infância
estava muito ligada a isso.
Guido – Qual a memória
que você guarda do menino?
Cid – Eu era um menino muito
tímido, sempre fui muito tímido. Falava pouco de mim mesmo, falava muito, mas
não de mim, de assuntos referentes à escola, de leituras. Na época, era um bom
aluno, um bom estudante. Era o tipo do alunozinho chato, que andava falando as
coisas e as pessoas, achando que eu era inteligente, ficavam perguntando
assuntos de História, disso e daquilo outro. Por trás disso, escondia minha
timidez, toda a minha dificuldade de me comunicar com os outros.
Guido – Aproveitando o
embalo, uma pergunta bem lugar-comum, aliás, muito em moda nos anos 70: algum
trauma de infância?
Cid – Minha infância foi marcada,
também, por um certo complexo de inferioridade. Não sei por que razão, me
sentia inferior aos outros meninos. Achava que os outros eram mais aptos para
as atividades do cotidiano, eram melhor sucedidos em termos afetivos com as
meninas, etc. Eu me resguardava muito e isso foi uma coisa muito pesada para
mim. Convivi com isso durante a infância e grande parte da adolescência.
Guido – O menino tímido,
que você era, enfrentava problemas na hora de tomar banho no rio, de tirar a
roupa na frente dos outros?
Cid – Aí não. O rio era um lance
completamente diferente. Lá, me sentia livre, me sentia dominando aquele
universo, o universo do rio. Agora, lá, a gente não tomava banho nu não. Banho
nu a gente tomava em um lugar chamado Atrás do Rio, que era uma área
considerada o sanitário público de Nagé. Tanto que o povo o chamava de “o
cagador”. É que, nessa época, em Nagé, poucas eram as casas que tinham
sanitário. A casa de minha avó tinha e outras casas também tinham, mas eram
poucas. A maioria não tinha. Então, os homens iam descomer no lugar que
chamavam Atrás do Rio. Depois que se fazia o serviço, entrava-se na água pra
tomar banho e ali, sim, se tomava banho nu. Então, não havia essa de pudor.
Inclusive as pessoas cagavam coletivamente, palestrando, comentando os assuntos
do dia, como se fossem parlamentares em sessão concorrida. Uma coisa insólita,
mas culturalmente legitimada pelo uso.
INFLUÊNCIA DE CABRAL PESOU
Guido – Qual a
importância que o rio Nagé tem em sua obra poética?
Cid – Dentro de um determinado momento, o
rio que passa por Nagé, que é o Paraguaçu, que também passa por Maragogipe,
Cachoeira, toda aquela região, adquiriu uma importância muito grande na minha
vida. Na verdade, quando levei o rio para a literatura, eu não estava
percebendo a importância que o rio tinha em minha vida, dentro da minha
subjetividade. Pesou muito, nesse levar o rio para a literatura, a associação
com o trabalho poético de João Cabral de Melo Neto. Meu primeiro livro, Temporário,
foi recebido com desconfiança por algumas pessoas, porque, em termos de
consciência poética, de artesanato, tinha muito da afoiteza do calouro alegre,
do iniciante que pensava ser poeta. Era um livro em que eu dizia as coisas do
jeito que sentia e, muitas vezes, não como deveria ser dito pela voz da poesia.
Evidentemente, as explosões mais confessionais do quase adolescente não eram
poesia, eram restos de palavras perdidas... Já meu segundo livro, Paralelo
entre homem e rio / Fluviário, foi um livro de laboratório. Parti de um
modelo. Na época, o modelo mais importante era João Cabral de Melo Neto. Como
Cabral se voltava muito para o rio Capibaribe – ou para o Beberibe –, talvez
por uma influência formal, passei a trabalhar a temática do rio. Somente depois
descobri que, na verdade, existia um rio, que era o meu rio também.
Guido – Bem, e o nível
econômico de sua família?
Cid – Numa cidade empobrecida,
muita gente tinha a gente na conta de ricos, mas era só impressão. Isso porque
meu avô materno tinha sido um homem bem de vida, depois arruinado pelo jogo, e
minha avó paterna tinha uma empresa de energia elétrica, que meu pai
administrava. Num lugar pequeno como Nagé, ter uma empresa de luz não era lá
grande coisa. Principalmente se você considerar que lá moravam vários parentes,
cujas casas eram iluminadas pela empresa de minha avó, sem que isto implicasse
em pagamento. Nessa época, era uma empresa que não dava lucro, só depois que
foi vendida a outra empresa de maior porte, com a mentalidade empresarial, é
que se tornou lucrativa. E também não se pagava energia porque meu pai era
político, tinha aspirações políticas, era vereador e depois de algumas derrotas
se elegeu prefeito. Ele tinha outros negócios, abriu o primeiro ginásio de
Maragogipe, em sociedade com tio Gerson, um homem muito dinâmico e que sabia se
relacionar muito bem. Eles fundaram o Ginásio Simões Filho, cujo nome era em
homenagem ao então Ministro da Educação. Simões Filho, político tradicional,
doou ao Ginásio todo o material escolar, quadro negro, carteiras etc... Depois,
meu pai e tio Gerson fundaram a Escola Normal de Maragogipe.
Guido – Cortando um
pouco: como é que você descobre o jornalismo?
Cid – Quando terminei o ginásio, vim pra
Salvador fazer o clássico – lá só havia o curso pedagógico, isto é, a Escola
Normal – me matriculei no Colégio Estadual da Bahia, o Central, e perdi o ano.
Aqui, claro, me vi livre da tutela materna. Minha mãe era uma figura muito
forte, obrigava a gente a estudar, tinha de ser bom aluno. Então, sofria uma
pressão danada. Como era muito curioso, quando criança, acho que vale à pena
contar o episódio, porque isso me deu certa fama na cidade. Quando Pedro Calmon
foi candidato ao Governo da Bahia, penso que em 1954, eu enfeitava meu carrinho
de pedalar com propagandas e saía correndo pela rua, repetindo aquelas
propagandas de Pedro Calmon e do meu pai, que era candidato a vereador. No dia
em que Pedro Calmon chegou à cidade, tentei fazer um discurso. No meio do
comício, falei com minha mãe, anunciei meu desejo, o de discursar. Ela, pra se
livrar de mim, disse: “Fale com seu pai”. Aí, subi no coreto, e quando disse a
meu pai que queria discursar, ele, também pra se livrar de mim, disse: “Fale
com Dr. Pedro Calmon”. Pedro Calmon já ia iniciar o discurso quando puxei o
paletó dele e falei: “Dr. Pedro, quero fazer um discurso”. Tomado de surpresa,
ele me carregou, me colocou no palanque e eu falei. Repeti as mesmas coisas que
dizia no microfone de brinquedo do carrinho, e outras coisas que ouvia dos
adultos. Assim, ganhei fama na cidade de menino inteligente, que fazia até
discurso em comício de gente grande. Então, todo mundo passou a cobrar uma
maturidade que, evidentemente, eu não tinha. E essa cobrança era feita em todo
canto, em casa, na escola, aonde eu ia. No curso de ginásio, minha mãe era muito
severa comigo. Foi a professora mais severa que eu tive. Fui reprovado por ela
em matemática em dois anos letivos, precisando fazer curso de recuperação
durante as férias. Então, quando vim para Salvador, me vi livre de tudo isso.
Ninguém me cobrava nada, eu não estudava, perdi o ano; fiz tudo que tinha
direito, enfim. Pra você ter uma ideia, fiz o Clássico em cinco anos, ao invés
de três. E saí do Central sem estar preparado pra fazer o vestibular. Eu queria
fazer o vestibular de Letras. Mas o vestibular de Letras, naquela ocasião,
exigia que se dominasse bem o Latim e uma língua estrangeira, o Inglês, coisa
que eu não fazia. Então, resolvi trabalhar, uma vez que tinha perdido o
vestibular, começando por rádio. Em Maragogipe, meu pai tinha um serviço de alto-falante,
então eu ganhei certo traquejo com o microfone. Achava bonito ser locutor; lá,
tinha programa de auditório, aquela história toda. Na época, procurei Nilton
Spínola Cardoso, que ia sempre a Maragogipe, que tinha um programa semanal no
serviço de alto-falante de meu pai, ele, Gastão do Rego Monteiro e outros ases
da radiofonia baiana. Procurei-o, então, para lhe pedir uma vaga de locutor na
Rádio Cultura da Bahia onde ele apresentava seu famoso programa “Na polícia e
nas ruas”. Ele tinha muita influência na emissora. Mas minha voz ainda estava
no período de transição, e ainda não dava. Ele sugeriu que eu atuasse como
repórter policial, e na reportagem geral, onde, logo depois, passei a redator.
Mas nunca apareceu a sonhada chance de eu trabalhar como locutor, que era meu
ideal de adolescente do interior.
MEU SONHO DE RAPAZ DO INTERIOR
ERA SER LOCUTOR DE RÁRIO
Guido – Na segunda metade dos anos 60, talvez mais para o
fim, tipo 1967/69, você descobre o jornalismo escrito, não é?
Cid – Quando fui morar na Pituba – isto
quando meus pais vieram morar em Salvador –, conheci o Dr. Paulo Nacife, que
era diretor-gerente dos Diários Associados. Esse conhecimento veio através de
um jornal de bairro que nós fazíamos, O Xixi. O outro jornal de bairro,
lá na Pituba mesmo, era o de Renato Riela, O Arrastão. O meu, a
julgar pelo meu próprio título, era mais de molecagem. O de Riella era sério,
intelectualizado, na medida em que isso era possível numa produção jornalística
de amadores e adolescente. Então, por causa do meu despudorado Xixi,
Dr. Paulo Nacife conheceu a gente, o grupo que fazia o jornal. Ele me perguntou
se eu tinha interesse em fazer jornalismo, eu disse que tinha e fui ser foca no
Diário de Noticias. Aliás, me enganei. Eu disse a ele que não queria, não! Ele
perguntou se eu queria ser foca no DN. A palavra “foca” não me
agradou. Eu não queria virar bicho, queria ser jornalista. Aí, continuei na
Rádio. Depois, como estava trabalhando como redator, senti que estava na hora
de experimentar o texto de jornal. Então, voltei a Dr. Paulo e disse que queria
focar no DN. O chefe de reportagem era Antônio Lins, com quem aprendi muita
coisa. Ele foi minha melhor escola de jornalismo e a de muita gente, também,
como Béu Machado, Renato Riella e outros mais.
Guido – Me lembro que
lá, no Diário, quando Renato Riella era o editor-chefe, você escreveu uma
coluna de notas policiais em linguagem de cordel. Como foi essa experiência?
Cid – Nessa época, já era
copidesque. Como eu copidescava a página de polícia e chegavam algumas notícias
truncadas, ou apenas com quatro ou cinco linhas de informação, achei que
poderia aproveitar aquele material em uma coluna. De início, me limitava a
registrar essas informações em tópicos. Depois, pensei o seguinte: se pegasse
aquele material e trabalhasse em cima dele, usando a imaginação, inclusive em
nível ficcional, teria melhor resultado. Aí, criei a coluna “Saco de Gatos”,
que assinava com o pseudônimo de Kaveira. Na verdade, era para ser K. Vieira.
Porque eu assinava assim: K. Vieira. Era para ser Vieira, mesmo, mas saiu
“Veira”, e resolvi não incluir o “i” que a composição engoliu. O repórter
Domingos Souza era quem trazia as notícias. Então, a gente trabalhava em cima
da ocorrência e usava títulos que seriam risíveis no jornalismo objetivo, tipo:
“por sonhar com uma linda jumenta, jegue, indefeso, tomba esfaqueado.”
Guido – Vamos pular para
outro assunto: e a televisão?
Cid – Fui fazer televisão casualmente,
quando já tinha perdido a esperança de ser locutor de rádio. Eu escrevia no
jornal Estado da Bahia, que também era órgão dos Diários e
Emissoras Associados, uma coluna de artes, sob o título de “Ponto Comum”,
substituindo Jorge Lindsay. Então, Flávio Cavalcanti assinou um contrato com a
TV Itapoan para apresentar uma edição baiana de A Grande Chance, o programa que
apresentava pela Rede Tupy. Aqui o título era A Caminho da Grande Chance. O
júri era formado por críticos de artes ou pessoas vinculadas com a atividade
artística, como Coqueijo, Alcivando Luz, Ildásio Tavares e outros. O DN indicou
seu cronista social, Sylvio Lamenha, que era uma grande pessoa, dotada de
instigante bagagem intelectual. O Estado da Bahia não tinha
ninguém para representá-lo. Às vésperas de se indicar alguém, Dr. Odorico
Tavares, o diretor da empresa, cobrou do editor do Estado da Bahia¸
Heitor Castro, a indicação de seu representante. Enquanto não se arranjava um
nome definitivo e a altura do jornal, sugeriram que eu fosse. Eu nem sabia que
ia estrear na tv, quando um funcionário da empresa, Linotipo – esse o apelido
dele –, apareceu lá em casa, no Boulevard Suíço, com a ordem de que estivesse à
noite, de paletó e gravata, na TV Itapoan, para participar de um programa. E
repetiu que era ordem de Dr. Odorico. E lá fui eu.
Guido – O certo é que
você ficou sendo o titular, não é?
Cid – Entrei no júri sabendo que
teria uma atuação provisória, logo seria substituído. Estava lá como se o
titular estivesse impossibilitado de comparecer. Aconteceu que minha primeira
apresentação agradou. E agradou porque era um menino do interior, assustado,
tímido, com um jeitão de garoto de 18 anos. Isso despertou uma certa simpatia
do público.
Guido – Você passou a
ser conhecido como o Cidinho das Meninas...
Cid – Exato. Então, em função da simpatia
causada, a direção da Itapoan resolveu me manter no júri. O cachê semanal não
era de se jogar fora, acho que era superior ao salário mensal do jornal. Então,
Dometila Garrido começou a produzir, aos sábados à tarde, o Poder Jovem e fui
indicado pela direção da Tv como apresentador, ao lado de Sônia Dias. Era
programa de auditório, ao vivo, com a música jovem. E aí, quanto a mim, foi um
fracasso. Porque não estava na minha. Em A Caminho da Grande Chance, eu me saía
razoavelmente porque se discutia música popular brasileira, que era uma coisa
que estava nas minhas preocupações, estava na minha faixa de interesse, eu já
produzia shows, fazia letra de músicas. Quer dizer, música brasileira era uma
coisa que eu vivia, era a forma que encontrei. No Poder Jovem, que se voltava
para a música da Jovem Guarda, me senti deslocado, porque não tinha a menor
atração pela música de pauleira, rock com rótulo de twist e essas coisas mais.
Sônia Dias, ao contrário, integrava-se no espírito do programa. Eu não.
Me sentia perdido ali dentro. Ouvinte dos sambas de Chico Buarque, não
gostava de Raul Seixas, meu colega no colégio Central, nem dos berros de
guitarra.
Guido – E porque
continuava?
Cid – Aí é que está. A
essa altura, eu já tinha deixado o jornal. Assinei um contrato de exclusividade
com a televisão, pelo qual ganhava bem. Comprei meu primeiro carro, era um
Gordini. De repente, o menino pobre se viu com dinheiro na mão, podia frequentar
a noite. Por ocasião de um festival, não sei se foi o Nordestino da Canção ou
outro qualquer, fiz uma música com o maestro Carlos Lacerda que a letra dizia o
seguinte: “Meu carro, correndo asfalto,/ me torna imagem da televisão./ Assim,
fingindo descuido,/ um pé de esperança/ esqueci de plantar”. E por aí iam as
coisas. Era uma música que falava de amor, de lirismo e, ao mesmo tempo, de ser
tornado imagem massificada da televisão. Então, fazia o programa de má vontade.
Chegava lá não lia o script, não me empenhava. Houve o desgaste, o programa foi
caindo até que saiu do ar.
Guido – Quando o Grupo
Função foi fundado?
Cid – Creio que foi por volta de 1968. A
ambição era montar espetáculos de teatro. A gente não chegou a montar nenhuma
peça, por falta de preparo de produção. No entanto, o Grupo Função montou
vários espetáculos, através dos quais estrearam vários nomes hoje conhecidos,
como Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Moraes Moreira, além de apresentar nomes já
confirmados pelo gosto popular, como Batatinha, Tião Motorista, Panela. Quer
dizer, o objetivo era produzir bons espetáculos, que tivessem uma boa
iluminação, um bom cenário, ou seja, que o compositor ou o cantor não se
limitasse a pegar o microfone e cantar, mas criar um clima, um ambiente
agradável. Então, o Grupo Função trabalhava junto, fazia música junto.
Batatinha, que, até então, só tivera um parceiro, Jota Luna, passou a fazer
música comigo, com Edil Pacheco, com Ederaldo Gentil – todo mundo ia
trabalhando entre si. Um dia, Moraes Moreira me procurou e disse que o Grupo
Função era meio devagar para o que ele pretendia, ele queria uma coisa mais
embalada e também mais voltada para a cor local. E olhe que no Grupo, além de
sambistas tradicionais, de cantores modernos como Celeste e Tereza, havia um
conjunto de iê-iê-iê, os Ecléticos, mas ele queria coisa mais arrojada e que,
ao mesmo tempo, trabalhasse em cima de temas baianos. Pouco tempo depois ele se
apresentava com o grupo que seria a base dos Novos Baianos, uma espécie de
prolongamento da revolução da geração de Gil, Caetano, Tom Zé, Bethânia e Gal.
Com a saída de Moraes, de Tereza e de Celeste, que se ligaram a Alcivando Luz,
o Grupo Função foi, aos poucos, se desfazendo. Mas cumpriu seu papel:
realizamos alguns espetáculos, dois especiais para a televisão, enfim, marcou
com vigor um momento de calmaria na nossa música. Era hora de cada um seguir
seu caminho, caminhar com as próprias pernas.
Guido – Com o fim do
Grupo Função, você experimenta o teatro, não mais como diretor ou produtor, mas
como ator. Como foi esse chamado da vocação?
Cid – Fui convidado por Sóstrates Gentil
que, com Lena Franca, dirigia o Teatro de Máscaras – Grupo Tema – para fazer
teatro com ele. Como eu tinha feito sucesso na televisão, ele achava que também
podia fazer sucesso no teatro ou, pelo menos, puxar público. Sóstrates
acreditava muito nisso. Me lembro que ele usou uma vez, numa peça de teatro, o
juiz de futebol Garibaldo Mattos como ator, num texto de Florisvaldo Mattos.
Era uma estratégia. Pouco depois, foi a minha vez de ser deslocado de uma área
para outra, também por iniciativa de Sóstrates Gentil. Fui fazer “O Homem do
Princípio ao Fim”, de Millôr Fernandes, dirigida por Gentil. Foi, inclusive,
uma peça que Millôr malhou muito. Porque a proposta dele, enquanto autor, não
era a proposta de Sóstrates Gentil. Na criação do mundo, Sóstrates me disse que
queria um Adão viado. O primeiro homem tem que ser uma bicha. Que Sóstrates
queria criar uma coisa realmente debochativa. Na apresentação da realidade
brasileira, Sóstrates pretendeu retratar Getúlio mais para o ridículo. Então,
por causa dessa intenção, quando eu fazia a leitura da Carta-Testamento, aquela
que fala nas forças e nos interesses contra o povo, a coisa beirava o ridículo.
Era um espetáculo demolidor. Isso provocou muita reação. A ideia de Sóstrates
era interessante. Não sei se foi bem executada. Me parece que Sóstrates, como
diretor, nem sempre conseguia executar os projetos que tinha na cabeça. Ele
tinha certa formação filosófica, pensava alto, mas não realizava no palco o que
botava no papel. Antes, eu tinha feito teatro infantil com Carlos Petrovick. Em
matéria de teatro adulto, como ator, parei nessa experiência.
Guido – De sua produção
como compositor, qual a fase que você destacaria como a mais significativa?
Cid – Tive vários
momentos. Com Batatinha, com Carlos Lacerda, com Edil Pacheco, Ederaldo Gentil,
Tião Motorista e outros. Mas considero que a minha melhor fase foi quando me
aproximei de uma das figuras da minha admiração, Fernando Lona, pioneiro da
moderna vertente nordestina da música brasileira. O cinema novo teve como
trilha sonora muitas das suas composições. Desde rapazinho eu era admirador do
trabalho de Lona, com quem, mais tarde, viria a fazer composições como “Cidadão
do Mundo” e “Estandarte de Couro, Brasões”. A proposta da gente era retomar
aquilo que Ariano Suassuna e outros fizeram muito bem em Pernambuco, através do
Movimento Armorial: fazer uma música de base telúrica, voltada para a terra, e
que tivesse uma expressão semierudita. E aí, a partir dessa vertente musical, a
gente pensou em fazer um espetáculo, sob o título “Estandarte de Couro,
Brasões”, que teria suporte na massa de instrumentos da Orquestra Sinfônica da
Universidade Federal da Bahia, sob a direção musical do maestro Lindembergue
Cardoso, que chegou a escrever as partituras. Íamos trabalhar com Orquestra,
Coral – de onde um dos cantores era Carlos Pita, hoje um dos excelentes nomes
da MPB; ele era o solista do Coral. Por essa ocasião, Pita conheceu Fernando
Lona. Então, “Estandarte de Couro, Brasões” reunia músicas de Lona feitas em
parceria com Pita, comigo e com Vandré. Mas aí o espetáculo pifou, porque, ao
contrário do que havia prometido, a Fundação Cultural não topou financiá-lo.
Essa é uma homenagem que a cultura baiana deve a Fernando Lona. Antes de
Caetano e Gil descobrirem o filão do Nordeste, Lona já tinha feito essa
descoberta. Foi o pioneiro, injustamente esquecido. Morreu injustiçado. Com a
morte de Fernando Lona, encerrei minha carreira de compositor.
Guido – Dá pra lembrar
sua experiência em festivais universitários?
Cid –
João Alfredo Quadros e Roberto
Koch, que dirigiam o Serviço de Recreação e
Esporte, resolveram criar um Festival
Universitário de Música Popular. O primeiro, acho, foi
produzido por Roberto
Santana, este pioneiro em muita coisa boa. Daí em diante, assumi
a produção dos
festivais que se seguiram. Na mesma época, com Carlos
Nápoli, dirigi
espetáculos de música popular. Foi Carlos Nápoli
quem me levou pra trabalhar na
área universitária com promoções; ele fazia
a produção, eu, a direção. Nápoli
conseguiu, na UFBA., uma verba para shows sobre compositores baianos e
me
chamou para fazer a pesquisa musical e dirigir o espetáculo.
Resolvemos levar a
obra de Assis Valente e Humberto Porto e apresentar o show na Reitoria.
Na
época, só se abria o salão nobre da Reitoria para
concertos sinfônicos. Com o
espetáculo sobre Assis Valente e Humberto Porto
conseguimos quebrar o tabu.
Fora da televisão e de jornal, era assim que eu me virava, ia
ganhando algum
dinheiro que me garantia a sobrevivência.
Guido – Sua passagem
pelo Teatro Castro Alves, enquanto diretor, foi meio tumultuada, não?
Cid – Inteiramente. Quando fui convidado para
assumir a direção do Castro Alves, no Governo Roberto Santos, quando o deputado
Carlos Sant’Anna era secretário da Educação e Cultura, hesitei muito em aceitar
o convite. Depois, como eu tinha toda essa vivência com espetáculos, resolvi
aceitar o convite para desenvolver uma proposta de trabalho. Minha ideia era
desmistificar o TCA, colocá-lo a serviço da produção cultural baiana, abrir
espaço para a música e para o teatro. Até então, o Castro Alves era conhecido
como “elefante branco”, destinado a balé, ópera e outros eventos. Quando assumi
sua direção, para você ter uma ideia, lá só se entrava de paletó e gravata.
Caetano e Gil, que já eram nomes nacionais, não conseguiram pauta. Lugar de
música popular era a Concha Acústica, para não “conspurcar as alcatifas do
TCA”, conforme um grã-fino pedante escreveu num jornal. Muita gente teve que ir
ao dicionário para saber o que bichão queria dizer. Então, fiz aquela abertura,
o pessoal passou a entrar de camiseta, os grupos de capoeira passaram a se
apresentar no palco do monstro sagrado, enfim o Castro Alves se inseria na vida
da comunidade. Ao lado disso, divergências pessoais puseram fim ao trabalho.
O PRIMEIRO DISCURSO
Guido – Como começaram
suas divergências com o diretor da Fundação Cultural?
Cid – Assim que assumiu o cargo de
diretor da Fundação, Fernando Peres me chamou para uma conversa. Eu havia sido
nomeado, no início do governo Roberto Santos, pelo secretário de Educação,
Carlos Sant’Anna. Primeiro, Peres foi ao secretário e exigiu minha demissão.
Não conseguiu. Foi ao governador Roberto Santos e também não conseguiu. Quer
dizer, meu nome lhe foi imposto. Então, ele me convocou para uma reunião. Logo
de início me disse que, daquela data em diante, quem mandava no Teatro era ele.
Retruquei que não era bem assim. Até porque o diretor do Teatro era eu. Então,
ficou aquele clima carregado, pesado.
Guido – E sua demissão,
como é que foi?
Cid – Na verdade, Peres só tomou a
iniciativa de me demitir no momento em que o governador Roberto Santos
recomendou que ele apresentasse seu pedido de demissão do cargo de diretor da
Fundação Cultural. Aí, antes de entregar a carta, e aproveitando a ausência do
governador e do secretário de Educação, me demitiu, sob acusação de que eu
havia praticado “desvio e exaurimento de receita”. Ao que, pelo Jornal
do Brasil e por A Tarde, deu ampla divulgação, mesmo
sabendo que não era verdade. O próprio governador Roberto Santos, na época,
divulgou nota pública esclarecendo não ter havido desvio de verba, mas apenas
incompatibilidades entre os dois administradores demitidos.
Guido – Vamos trocar
esse samba-enredo em miúdos?
Cid – A história é a seguinte: um ano
antes de minha demissão houve um espetáculo no Castro Alves, “Os Doces
Bárbaros”, com Caetano, Gil, Gal e Bethânia, ao qual dispensei o pagamento da
taxa destinada ao TCA. É que os empresários reservaram uma parte da renda para
o Natal dos funcionários da Secretaria da Educação. Não pense que era um
precedente. Era uma prática comum. Havia uma portaria que conferia ao diretor
do TCA esse direito, o de arbitrar ou dispensar o pagamento da taxa, sempre que
julgasse necessário. Eu já havia liberado para mais de 100 espetáculos, entre
eles “A Morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, de João Augusto, baseado na
obra de Jorge Amado. Ano passado, o Tribunal de Contas do Estado, a propósito
de recurso que impetrei, reconheceu que não houve deslize algum e que eu, como
diretor do Teatro Castro Alves, tinha competência – o que significa dizer:
amparo legal – para fazer o que fiz. Portanto, tudo não passou de uma campanha,
de natureza pessoal, para me desmoralizar. Tenho, a meu favor, um argumento
irrespondível: a decisão do Tribunal de Contas.
Guido – Vamos falar
agora da entrevista. Como pintou o Espelho de Narciso?
Cid – Minha ideia inicial, quando
elaborei o projeto para minha dissertação de Mestrado, era trabalhar cordel,
que era uma coisa com a qual tinha muita afinidade. Depois, descobri que,
explorando a linguagem num Mestrado em Língua Portuguesa, estava tentando fazer
literatura. Entendi que tinha de fazer um trabalho de língua, não de recriação
da linguagem. Então, resolvi fazer um estudo da língua, que era uma maneira de
enfrentar o desafio, compreender o instrumento de trabalho do escritor.
Planejei uma coisa muito audaciosa, passando pela história da linguagem humana
à filosofia da linguagem. Me propus, em função desse projeto, estudar a
linguagem desde os gregos, Platão etc. até a atualidade. Claro que não peguei
tudo em matéria de linguagem. Peguei alguma coisa da Antiguidade, pouquíssimo
da Idade Média, a Renascença, o Romantismo, enfim as várias escolas, pinçando
os autores mais representativos de cada fase. E não me prendi à linguística, ao
estruturalismo. Procurei adotar uma postura, digamos, assim, filosófica.
Procurei mostrar que linguagem e cultura são coisas que se intercalam, que
estão associadas. Quer dizer, procuro compreender o ser humano enquanto ser
falante, enquanto ser que tem o domínio da faculdade da linguagem.
Guido – E por que o Espelho
de Narciso?
Cid – O título não veio
racionalmente. Na verdade, o título acadêmico do trabalho é Linguagem,
Cultura e Ideologia no Idealismo e no Marxismo. Discuto essas relações com
duas correntes filosóficas, o idealismo, que vem desde Platão, e o Marxismo,
compreendendo Marx e Engels, além dos seus seguidores. Então, surgiu o nome Espelho
de Narciso, que achei bonito. Depois percebi que a linguagem era um
espelho, e que nós atuamos como uma espécie de Narciso, nos miramos na sua
esplendente expressão. O homem se vê refletido na linguagem que fala. Quer
dizer, encontrei um título que também tem relação com a psicanálise, e essa
pesquisa continuou na minha tese de doutoramento, O Espaço de
Transgressão em que tento discutir a diferença entre o espaço da
cultura e a força de rompimento que a literatura representa dentro do mesmo
universo social. Isto porque o escritor se põe sempre à margem desse espaço
estabelecido pelo contrato social. Veja a associação que há entre a loucura e a
literatura. O louco investe contra o espaço da convenção e tenta descobrir o
que há fora desse espaço. O escritor também faz isso, buscando a lógica para
além do logos.
Guido – Qual a diferença
entre o escritor e o louco?
Cid – A diferença fundamental é que
a investida atuante do louco é inconsciente, enquanto a investida criadora do
artista é precedida e vigiada pela consciência. O artista (seja ele um amante
das palavras, das tintas ou dos movimentos) entroniza sua loucura num carro
alegórico, monta nas suas dificuldades e cavalga as suas deficiências. A
consciência dele precisa ser suficientemente forte para conseguir captar todas
as experiências oferecidas pelo desatino e levá-las para o espaço da cultura.
Quer dizer, o artista rompe com a cultura, mas retorna e seduz a cultura.
Porque ele traz a experiência lá de fora para enriquecer ainda mais o espaço
aberto e fechado da cultura. Aberto, porque ampliado pela história do próprio
homem, fechado porque resultante das forças sociais de conservação. Como há
essa ligação entre a loucura e a literatura, precisei estudar um pouco a
psicanálise para entender menos confusamente esses mecanismos.
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