Um senador
do império
– “Não reconheço a legitimidade do governo da ditadura.
Poder apenas de fato, efeito de um golpe audacioso, produto violento de um
crime caracterizado de sedição militar; da deslealdade e da traição ao governo
constitucional da monarquia.” São palavras retiradas do Manifesto que o senador
Fernandes da Cunha dirigiu à Nação depois do golpe militar que extinguiu o
Império e criou a República.
Maior valor tem este gesto de um defensor da democracia,
quando se sabe que ele teve o seu nome indicado pelo Marechal de Ferro,
Floriano Peixoto, para a presidência da recém-criada República. Quantos
políticos brasileiros recusariam pongar no bonde do poder, mantendo a defesa
dos seus princípios?
Qual a relação das trapalhadas de um governante que quer
bisar o seu número no palco do poder com o rigor ético do senador Fernandes da
Cunha?
Nenhuma. A relação que continua viva é entre o
desrespeito à legitimidade, praticada ontem e hoje, pelos guardiões e pelos sequestradores
do poder.
A questão vem à tona a propósito do lançamento do livro A vida do senador Fernandes da Cunha, de
Jayme de Sá Menezes.
Curiosamente, a apresentação da obra ao público presente
à Academia de Letras da Bahia coube ao senador da República Josaphat Marinho.
Como o seu trajeto pessoal é um tanto parecido com o do senador Fernandes da
Cunha, a defesa do caráter independente do biografado ganhou foros de
declaração de princípios. Lembre-se que o ex-secretário de estado do governo
Juracy Magalhães não acompanhou o seu líder quando do golpe militar de 64,
preferindo colocar a sua voz a serviço dos opositores do regime de força.
Ocupando hoje um cadeira no Senado ao lado dos aliados do Presidente da
República, tem demonstrado uma coerência e uma fidelidade aos princípios do
direito que surpreendem a lógica de subserviência que caracteriza a política
situacionista no Brasil.
Ao saudar a publicação do livro de Sá Menezes, Josaphat
Marinho destacou a retidão de caráter e a independência do senador Fernandes da
Cunha, mostrando que o velho político baiano não confundia a condição de aliado
com a de cumpridor de tarefas. O senso crítico e o respeito à sociedade devem
estar acima dos interesses momentâneos de um grupo.
Mas estas reflexões só foram possíveis a partir do
trabalho de Jayme de Sá Menezes que, ao levantar nas fontes, os fatos mais
significativos da vida de J. J. Fernandes da Cunha, produziu um livro útil e
sobretudo oportuno.
Convém lembrar que este médico por formação e estudioso
por vocação que é Sá Menezes vem contribuindo para a construção do presente
através do resgate de figuras exponenciais do passado. Com o levantamento
paciente da vida de personalidades exemplares, Jayme de Sá Menezes dedica toda
sua inteligência a uma causa das mais nobres. Sua bibliografia é constituída
por cerca de trinta livros e opúsculos, que se dividem pelas áreas da medicina
e da pesquisa biográfica.
De um lado, nas obras médicas, o estudioso quer desvendar
as sendas do homem enquanto sujeito e enquanto ser vivo; do outro lado, nas
obras de erudição e investigação biográfica, ele quer abranger o homem no seu
espaço social, construindo, portanto, uma unidade resultante de disciplina e
talento para um conjunto de obras de natureza diversificada.
O livro Agrário de
Menezes; um liberal do império, foi publicado em 1968, tendo alcançado a
segunda edição em 1983, pelo Instituto Nacional do Livro. Vultos que ficaram: os irmãos Mangabeira, de 1977, é resultante de
um trabalho de pesquisa em torno da vida e da ação de Francisco, João e Otávio
Mangabeira. Ainda hoje, o livro é fonte obrigatória de consulta.
A simples enumeração das várias monografias de Jayme de
Sá Menezes sobre personalidades da sua admiração ultrapassaria o espaço desta
coluna, mas convém lembrar que em 1994 ele reuniu pequenos estudos sobre vultos
e sobre fatos importantes sob o título Na
senda da história e das letras. O título bem informa a ambição de toda uma
vida dedicada ao trabalho intelectual: preservar e fazer frutificar os exemplos
notáveis. Este também é o objetivo do novo livro do autor, A vida do senador Fernandes da Cunha.
___________________________
Um senador do império. Artigo crítico sobre o livro A vida do senador Fernandes da Cunha, de Jayme de Sá Menezes. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador,
6 out. 97, p. 7.
* * *
Correspondências para esta coluna:
R. Alberto Pondé, 147/103. CEP 40.280-630,
Salvador, Ba. Fone 351-8971