Uma Testemunha
da Guerra de Canudos
Quando a última expedição reunia milhares de soldados
para destruir a cidadela sertaneja de Canudos, cerca de vinte estudantes se
apresentaram como voluntários para trabalhar nos hospitais de campanha. O grupo
era formado por acadêmicos mais adiantados e até mesmo por calouros empenhados
em demonstrar bravura e apoio à república.
Alvim Martins Horcades, estudante dos cursos de farmácia
e de medicina, foi um daqueles que, voluntariamente, desempenhou a profissão
escolhida, sem interesse outro senão o de minimizar o sofrimento de quem
padecia. Testemunha dos fatos, ao regressar a Salvador, publicou uma série de
artigos no Jornal de Notícias.
Interrompida a publicação dos relatos baseados nas notas
de campanha, por divergência entre a editoria do jornal e o improvisado
repórter, Martins Horcades reuniu suas anotações no livro Descrição de uma viagem a Canudos. Ele explica que suspendeu a
publicação dos textos no jornal para “fazê-lo em um opúsculo, onde pudesse com
a responsabilidade do meu nome e máxima liberdade (...) explanar (...) o que vi
e narrar com toda lealdade o que presenciei.”
A observação
inicial do livro já chama atenção do leitor para o testemunho deste personagem,
naquilo que traz de polêmico. Horcades não se furta a emitir opinião,
interpretar o que viu e criticar alguns protagonistas de episódios finais da
luta.
Este caráter não pacífico do texto, sujeito a
dissidendos, depõe a seu favor. Sabemos que após uma guerra, o que se quer
contar é apenas aquilo que convém aos vencedores. Qualquer detalhe, por mais
singelo que seja, que não engrosse as fileiras do louvor e do reforço ao senso
comum é considerado destoante. Mas são precisamente estes detalhes,
considerados excrescências do calor da hora, que ajudam a posteridade a
resgatar a verdade histórica.
Por este viés, começa-se a ler com interesse a Descrição de uma viagem a Canudos, e
compreende-se a conveniência da sua republicação, graças a um trabalho de coedição
feito pela Egba e pela Edufba. A Empresa Gráfica da Bahia e a Editora da Ufba
associam-se convenientemente às comemorações dos cem anos da Guerra de Canudos.
O que falta nesta edição fac-similar do trabalho de Martins Horcades é uma
introdução, ou até mesmo uma simples nota na orelha do livro, situando o texto.
Não se compreende porque a Universidade, com tantos pesquisadores capazes de
iluminar a nossa leitura, preferiu deixar as orelhas do volume em branco.
Que o leitor não se impressione desfavoravelmente diante
das primeiras páginas do livro, onde o autor, pouco experiente em relatos desta
natureza, gasta tempo em considerações sem maior interesse. Louvações, modestas
desculpas, preâmbulos desnecessários... e a confissão: “Devo ser o primeiro a
notar o nenhum valor literário do meu trabalho, mas ao mesmo tempo empenho-me
em salientar o muito valor que encerra no fundo.”
Num tempo em que se confundia tudo que era escrito com
literatura, esta observação não deixa de ser pertinente. Ainda hoje, muita
gente quer exigir de um documento histórico, de um trabalho investigativo ou de
um relato testemunhal as mesmas qualidades indispensáveis ao texto literário. O
bom senso de Horcades vale como exemplo.
A sua imodéstia, assegurando a importância do material
reunido, é cabível. Seu relato mostra uma das muitas vozes dominantes, as vozes
daqueles que chamavam a população sertaneja de fanática, mas não viam o
fanatismo e a histeria coletiva de uma república incipiente.
O principal argumento da repressão a Canudos foi a sua
identificação com um foco de resistência monárquica financiado pelo
estrangeiro. Os mais lúcidos cidadãos, pródigos em identificar o fanatismo e a
ignorância dos jagunços, não foram capazes de perceber que um bando de
sertanejos isolados do mundo mal sabia quem foi o Imperador nem o quem era a
tal de República.
Os expedicionários ficaram surpresos e, ao mesmo tempo
indignados, com a solidariedade da população sertaneja para com a gente de
Canudos. Eles não sabiam da existência destes dois brasis. O nosso, de homens
das cidades, que bem ou mal vivemos e esperamos o amanhã. E o deles, dos
contingentes de excluídos que, ontem nos sertões e hoje nas favelas, entram em
guerra com o Brasil dos que ainda têm o que comer.
Horcades conta-nos o episódio da boiada conduzida para o
centro das operações. Ela deveria alimentar as tropas, mas como muitas das
outras provisões sofreram desvios mirabolantes. O gado estoura, se espalha, se perde. Quando os vaqueiros,
que antes serviam às tropas, foram vistos ao lado da vencida população de
Canudos, tanto os soldados quando o nosso Martins Horcades sentiram o desprezo
e o ódio atribuído aos traidores da pátria. Que pátria? A dos bem alimentados
ou a dos famintos?
Mal sabiam que traidores foram aqueles que não se
juntaram aos seis iguais, na hora derradeira da miséria e da humilhação.
Martins Horcades vê com olhos honestos e sinceros. Mas vê
com olhos daqueles que foram destruir as casas de uma gente simples e sem mais
nada além da sua favela sertaneja.
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Uma testemunha da guerra de canudos. Artigo crítico sobre
o livro Descrição de uma viagem a Canudos,
de Alvim Martins Horcades. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 25 ago. 97, p. 7.
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