Romance português
Sabemos que a teorização do saber literário, em si mesma,
não constitui instrumento de prazer. O mesmo pode-se dizer do painel de
degradação de uma sociedade, dos
bastidores da ditadura e da guerra colonial portuguesa. Para que todo esse
material se converta em conteúdo de um romance é preciso que esteja impregnado
de um "olhar inaugural". É preciso que os velhos e eternos problemas
do homem, da sua solidão, seus vícios e desejos, sejam vistos desde a raiz,
para que se alcance o âmago das coisas.
Sem dúvida, tudo isso pode ser dito a respeito do livro O rio triste, de Fernando Namora. O
romance se constrói a partir de uma notícia de jornal, de um fato comum,
particular, sem as características universais de que trata Aristóteles. Só ao
longo da narrativa, o verdadeiro e
pobre cotidiano de um certo Rodrigo dos Santos Abrantes adquire o reluzente
vigor do verossímil, e o seu drama
particular de indivíduo único se confunde com o universal. Isto é, com a
própria comédia humana.
O fio da trama desenrola a vida de um homem que abandona
a condição anônima e se converte em Alguém. Figura errante nas manchetes dos
jornais. A partir deste gancho, Namora fala do seu processo criador sem
resvalar para a descrição monótona. Não cede à tentação de emprestar ao texto o
bordão metalinguístico que transforma a estrutura em herói, nem envereda pelos
caminhos experimentais do chamado meta-romance. Ele permanece no âmbito dos
recursos formais já consagrados pela ficção e insere, de modo novo, a velho
teorizar. Desta forma, o livro se constrói enquanto texto experimental e
renovador.
É assim que Namora reescreve e retoca o quadro da
sociedade portuguesa, dirigindo o foco para os anos 60 e abrindo flashbacks que ajudam a compreender
estes anos como também outros momentos igualmente melancólicos.
Um mosaico de gente, fatos reais, notícias verdadeiras,
sonhos, delírios, fantasias, pessoas e fatos inventados, se harmoniza num texto
atraente e vivo. Um mosaico que se harmoniza e redefine como um corpo novo: não
mais visto como mosaico, mas como conteúdo romanesco.
Falando-se da mutação do velho em novo, convém sublinhar
um jogo especialmente sedutor na estrutura de O rio triste: o jogo do ponto de vista, ou do foco narrativo.
Os estudiosos da literatura têm procurado traçar um
quadro capaz de dar conta do modo pelo qual os acontecimentos narrados chegam
ao leitor. Fala-se de foco externo
objetivo, externo subjetivo; foco interno objetivo, interno subjetivo; narrativa em primeira pessoa, em
segunda pessoa; narração objetiva,
subjetiva etc.
Não é propósito aqui discutir estas denominações e
classificações, por mais úteis que possam ser, mas tão somente observar que no
romance O rio triste, de Fernando
Namora, de página para página o leitor é levado a conhecer os acontecimentos
através de pontos de vista diferentes. O solo narrativo é substituído por um
canto coral de vozes e registros variados.
O livro começa com uma narrativa impessoal, onde uma
terceira pessoa não implicada conta a história. Através, portanto, de um foco
externo objetivo: "No dia 14 de novembro de 1965, nesta cidade de Lisboa,
um homem saiu cedo de casa e já não voltou. Nesse dia e nos que se seguiram.
Chamava-se, ou chama-se (pois há quem pense que o seu caso não foi
suficientemente deslindado), Rodrigo dos Santos Abrantes. Um nome vulgar, se
excetuarmos talvez o Rodrigo, e por
isso mesmo detestado pelo próprio, que, como se verá mais adiante, projetava
mudá-lo para Rodrigo Macieira – as razões também as saberemos a seu
tempo."
Já nestas palavras iniciais o narrador nos leva a esperar
uma atitude subjetiva. Mas o segundo capítulo (se assim podemos chamar os
blocos em que o livro é dividido) se inicia com uma narrativa em primeira
pessoa, onde o narrador, descobriremos em seguida, é um escritor que não diz
seu nome - que tanto pode ser Fernando, André, João, Joaquim, quanto pode não
ter nome determinado; ou ter diversos nomes. Neste novo capítulo, Rodrigo, o
herói por quem o leitor passa a se interessar, é abandonado à sua sorte de
desaparecido e a narrativa é centrada nos tortuosos caminhos da
intelectualidade portuguesa, nas conversas dos cafés, nas teias e tramas, ou
nos dramas das redações de jornais durante a ditadura. Já aí estamos diante de
um outro motivo constituinte do tema romanesco. O narrador se refere,
com nomes verdadeiros e inventados, a intelectuais, jornais, livros, etc.,
falando, inclusive, de um tal André Bernardes.
Mais adiante, somos levados a acompanhar uma narrativa
feita por alguém que vem a se identificar como sendo este André Bernardes,
citando seu nome vocativamente, ao desenrolar a serpentina dos seus sentimentos.
Descobrimos, aos poucos, que o narrador em primeira pessoa – que no segundo
capítulo do livro conta o que se passa com André Bernardes, de modo pessoal,
distante, objetivo até – chama-se também André Bernardes.
Enquanto este narrador incógnito fala de si mesmo e dos
outros (inclusive de André Bernardes), nada nos leva a encontrar uma ligação
entre o narrador e o outro André. Mas quando André Bernardes toma a palavra
como narrador, ele se refere a acontecimentos da sua vida e envolve pessoas e episódios
que proferem o desfecho ou a sequência dos acontecimentos da vida do narrador incógnito.
Assim, os mesmos fatos são vistos de dois ângulos
diferentes. Ou de três, porque, não esqueçamos, é a narrativa impessoal que
inicia o romance, projetando Abrantes. É ainda esta narrativa impessoal que
alinhava os acontecimentos, ligando um motivo ao outro.
A pluralidade de focos narrativos é enriquecida ainda
mais por um artifício do autor: dar a palavra a outros personagens,
especialmente os personagens femininos, para narrarem acontecimentos através de
cartas, diários, etc., constituindo, muitas vezes, extensas passagens do livro.
A mudança do foco implica na mudança da perspectiva de sujeitos determinados
pelo gênero. Deste modo, ele quer
marcar a diferença de olhar do homem e da mulher, enquanto sujeitos do universo
romanesco.
Por tudo isso, O
rio triste é um romance que se constrói mediante a superposição de focos
narrativos: a diversidade de pontos de vista que oferecem ao leitor uma grande
panorâmica da sociedade portuguesa e das imensas veredas universais da alma
humana.
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Romance português. Artigo crítico sobre o livro O rio triste, de Fernando Namora.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 13 abr. 98, p. 7.