romance
doS sem-terra
A literatura, quase sempre, resgata momentos e
circunstâncias já passados, sabendo que a recriação perpetua na memória aquilo
que não se quer morto. Por isso, afastando-se da mobilidade do texto
jornalístico, o texto ficcional movimenta-se lentamente em busca de novos
focos. Os grandes ciclos temáticos que permitiram a reunião de autores e
romances em torno de um núcleo comum constituíram-se quando os fatos geradores
de tal confluência já se modificavam. O tempo da narrativa recua alguns anos
antes do tempo em que a narração se tece.
O distanciamento necessário à reelaboração das emoções
faz com que o escritor se afaste do redemoinho das coisas acontecentes e
resgate aquilo que se perdeu ou que está se perdendo. É como se ficção e
memória constituíssem um elo indissolúvel na corrente da escrita literária.
Quando um acontecimento que ainda se constitui e desdobra
é objeto da ficção, somos surpreendidos por um desconforto inquietante. Por uma
suspeita difusa. Estamos no território romanesco ou no vértice dos
acontecimentos, da reportagem?
É em tais circunstâncias que aparece o romance Os náufragos da terra, de Soria Machado, trazendo para a ficção os
conflitos gerados pelos sem-terra, quando milhares de homens e mulheres,
excluídos do testamento de Deus, reclamam uma nova partilha do espólio. Ao
transferir o drama destes “novos judeus”, em busca da terra prometida, das
páginas dos jornais ou das imagens da televisão para o espaço ficcional, O.
Soria Machado aproxima a todos nós, alheios à verdadeira dimensão humana do
conflito, do centro dos acontecimentos.
Pelos caminhos da narrativa de Os náufragos da terra, o leitor é exposto à desesperança dos
deserdados e à indiferença de todos nós. O cenário em que o romance
particulariza este drama geral é Fortaleza dos Amparos, pequena cidade do Rio
Grande do Sul, onde estancieiros, políticos e burocratas veem seu paraíso
invadido por criaturas famintas. A cumplicidade omissa do governo — vemos tão
nitidamente na ficção quanto na realidade — estimula a arrogância dos herdeiros
dos bens da terra e a reação de revolta e desespero dos deserdados. Como bem se
disse, o romance evidencia a indiferença e a imobilidade das autoridades, o
jogo político que cria a ilusão de que algo está sendo feito.
Ao criar um novo ciclo ou um novo filão temático do
romance brasileiro, O. Soria Machado não toma posição por nenhum dos
protagonistas do conflito. Ele se limita a mostrar o conflito do mesmo ponto de
vista que os nossos olhos estão habituados a ver. O foco do romance capta o
olhar dos homens da cidade, dos fazendeiros, das autoridades e, por fim, de um
segmento da igreja preocupado com o destino do homem enquanto animal da terra.
A tomada de partido em favor dos sem-terra pode ser
vislumbrada tanto no dilema do bispo, entre manter a Igreja submetida às
doações dos mais ricos ou levar a sua voz para confortar os mais pobres, quanto
no forte sentimento cristão do padre Valério, que abandona a segurança de uma
paróquia para se arriscar levando a mensagem da sua igreja aos aflitos.
O padre Valério representa aqueles sacerdotes que não
cederam à conveniência da submissão aos poderosos, mas acreditam no dever
cristão de levar a esperança aos desesperados. Por esta fidelidade religiosa,
que lhes obriga a trocar os favores dos “bem nascidos” pelos deveres da
consciência, são vistos com desconfiança. Como a igreja, com a exceção de Francisco
de Assis e de outros homens santos, sempre se aliou aos poderosos, a submissão
de um padre aos princípios da sua fé é vista como intolerável desobediência aos
escolhidos pela sorte para desfrutas as delícias do mundo.
Falta ao livro de O. Soria Machado a perspectiva do
sem-terra. Muito embora seu texto revele uma tomada de partido, implícita na
escolha das situações, os excluídos da terra não ganham o estatuto de
personagens, mas de simples tipos que transitam anonimamente. Os heróis, os
protagonistas, são todos habitantes deste outro Brasil ao qual pertencemos, nós
leitores e o autor. Por isso é que este texto não contempla o olhar dos
sem-terra, a sua perspectiva, a dimensão maior do seu drama.
E isto se entende. Embora autor de livros como Descaminhos, Fronteiras amargas e Territórios
perdidos, O. Soria Machado divide-se entre o ficcionista, o criador de
realidades, e o cientista, o estudioso de desenvolvimento regional. O possesso,
o criador de fantasias ainda não conseguiu expulsar do seu gabinete o
pesquisador, o homem empenhado em entender o homem.
Somente quando isto acontecer, uma outra lógica, a lógica
do outro, um outro olhar, o olhar dos personagens, substituirá o engajamento
pessoal e a fidelidade factual pela irrecusável realidade da ficção.
Enquanto isto não acontece, o romance Os náufragos da terra continua valendo
como iniciador do que pode vir a se constituir num filão temático da nossa
prosa de ficção. Mas como todo início, marcado pelos artifícios de um projeto.
Pela estrutura aparente que se expõe aos olhos, desviando o olhar das coisas
difíceis de ver.
Quando o romance ideológico dos anos trinta começava,
também trazia as marcas da filiação partidária. Quanto um técnico abandona o
mundo áspero da técnica e se compromete com a re-humanização possível, também o
começo é vacilante.
Talvez este seja o começo de algo novo.
Romance dos sem terra. Artigo crítico sobre o livro Os náufragos da terra, de Soria Machado. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 22 set. 97,
p. 7.
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