Poesia medievaL
As
cantigas de amigo constituem o aspecto mais rico e inventivo da lírica
trovadoresca galaico-portuguesa. Compreende-se por lírica à expressão poética de sentimentos e estados de espírito do
sujeito, isto é, do eu.
Modernamente
tem-se dado ênfase ao fato do eu poético
não coincidir necessariamente com o eu do
poeta, o que aponta para o caráter ficcional da lírica. Assim como uma peça
de teatro, um conto ou um romance têm personagens, o poeta lírico elege como
personagem, às vezes única, o eu
enunciador e, outras vezes, um outro eu,
diferenciado.
Nas
cantigas de amor del-Rei D. Denis este eu
é coincidentemente o do próprio trovador, que considera tal identificação
necessária à validade da composição, para que esta não se torne insincera. Mas
nas cantigas de amigo, sejam elas deste sincero trovador ou de um outro mais
afeito ao “fingimento” e à ficção, o sujeito, ou o eu da cantiga, é uma personagem feminina. Quem fala em toda cantiga
de amigo é uma mulher, contando os seus amores e lamentando a ausência do
amado.
Podemos
dizer, portanto, que, ao reconhecer a ficcionalidade do eu poético, a velha
cantiga de amigo já realiza aquilo que é frequentemente atribuído à
modernidade: a despersonalização. Na prática da cantiga de amigo a poesia é, claramente,
ficção; o que não se pode dizer de outras formas de poesia.
Ao
usar o termo poesia não percamos de
vista o fato de o trovadorismo não realizar poemas, no sentido moderno do
termo, mas cantigas.
Assim
como ocorreu com a poesia lírica da velha Grécia, a poesia da nossa língua tem
suas origens ligadas à música. No mundo antigo, chamava-se de lírico a este
gênero de composição porque os sentimentos e pensamentos do sujeito eram
externados num cântico acompanhado pela lira. Na Península Ibérica, a cítola
era tocada pelo trovador enquanto compunha suas peças. Ele era conhecedor e
praticante, portanto, do que hoje constituem duas artes autônomas: a música e a
poesia.
Os
estudiosos são unânimes em destacar o caráter local da cantiga de amigo,
sustentada numa longa tradição popular. Mas grande parte destas cantigas,
recolhida em cancioneiros, era composta por trovadores conhecedores do seu
ofício e das artes do seu tempo. Se algumas cantigas de amigo ainda denunciam o
caráter simples e quase espontâneo do gênero, outras aliam às marcas formais
desta simplicidade um requintado processo de tessitura poética. Roman Jakobson,
ao analisar uma cantiga de Martin Codax — trovador da Galícia que acompanhou o
rei castelhano D. Fernando nas suas expedições guerreiras —, evidencia o jogo
fônico empreendido pelo trovador e a riqueza dos processos de composição do
texto.
Quanto
à música, nada pode ser dito, porque mesmo as cantigas de Codax — que são as
únicas em cujo manuscrito aparecem as partituras — não tiveram a escrita
musical descodificada pelo musicólogos. O sistema de notação dos trovadores
galaico-portugueses permanece intocado pelos músicos do nosso tempo.
A
designação cantiga de amigo deriva do
fato de a mulher cantar a falta, ou a presença, do seu amado (o amigo). Quanto
à designação, não esqueçam que no interior da Bahia e em outras partes do
Brasil ainda se chama de amigo ao amante. Diz-se também que a pessoa está amigada, quando vive uma aventura
amorosa sem estar casada, o que testemunha a pitoresca ressonância medieval
ibérica em áreas rurais do Brasil contemporâneo.
Se
a cantiga de amor dá conta dos suspiros do homem pela sua senhora, a cantiga de
amigo relata o encontro da mulher do povo com o seu amado.
Uma
diferença essencial entre os dois gêneros é que a primeira cultiva a interdição
de Eros, ou simula a irrealização do encontro homem-mulher. Isto bem a gosto da
exigente educação cristã, para a qual o amor é o pecado original de todos os
males. Já a cantiga da amigo, por traduzir um sentimento popular, menos
comprometido, portanto, com os ideais e interdições da Igreja, trata da
plenitude de Eros. É a isto que muitos autores chamam de realismo deste gênero, em oposição ao idealismo das cantigas de
amor.
A
mulher que fala nas cantigas de amigo vê o amor como bem supremo e epifania da
vida, enquanto o sujeito das cantigas de amor cultiva a sublimação dos
sentimentos humanos em ânsia incorpórea. Não podemos deixar de ver aí o
confronto de duas culturas, de duas visões de mundo conflitantes, que compuseram
o sistema cultural da Península Ibérica na Idade Média. De um lado, a
sensualidade como essência da vida dos povos árabes, o culto do corpo e suas
veredas sinuosas; do outro, a abstinência como caminho à ascese cristã, a
identificação do corpo como lugar dos vícios.
Contrariando
os nossos hábitos cristãos, as personagens das cantigas de amigo encontram na
dança, na fala do corpo, a expressão mais pura da vida. Não esqueçamos que
muitos povos utilizam a dança como ritual religioso, contrariamente a nós que a
identificamos com a insinuação do pecado. A nossa triste gravidade se reflete
nos torturantes ais das cantigas de amor, enquanto a alegria do corpo dá vida
às cantigas de amigo.
Se
do ponto de vista conceitual, isto é, das formas do conteúdo, procuramos
destacar o papel das cantigas de amigo, do ponto de vista intrinsecamente
literário, ou das formas da expressão, este tipo de cantiga é sem dúvida mais
criativo e complexo. Ao contrário do que pensavam os eruditos do século XIII (e
do que ainda pensam muitos estudiosos), ao identificarem a cantiga de amor com
a criação mais refinada, a cantiga de amigo se impõe como criação literária por
excelência.
Na
mais antiga coletânea de composições galaico-portuguesas que temos
conhecimento, o códice hoje denominado de Cancioneiro
da Ajuda, apenas as cantigas de amor foram selecionadas como dignas de
serem preservadas. Por sua temática de origem popular, as cantigas de amigo,
apesar da complexa recriação estética de uma realidade, tiveram o mesmo destino
das cantigas de escárnio e maldizer: o esquecimento dos eruditos trecentistas.
Inspiradas
pelos trovadores provençais, as cantigas de amor formaram o gênero palaciano
por excelência. Palaciano na imitação do gosto das cortes mais prestigiadas da
Europa e no requinte espiritual imposto à nobreza pela educação clerical. A
nossa cantiga amor, ao contrário da que foi praticada em outras línguas, procura
se fixar no pretendente suspirante (o frenhedor),
enquanto a condição de amante pleno (o drut)
era privilégio dos franceses occitânicos, que exercitavam também a condição do
apaixonado que se declarava (o precador)
e a do namorado (o entendedor).
O
clero, desde a Idade Média, exerceu forte influência sobre a formação do
pensamento dominante ibérico, sendo talvez o principal responsável pela ética
cavalheiresca dos trovadores galaico-portugueses. A um cavaleiro cristão, ou a
um perfeito cavalheiro, convinha a condição de suspirante a um amor sublime. O
namorado das nossas donzelas preferia cantar em versos a condição virginal da
sua musa.
Além
destes pequenos ajustes de aculturação, e de uma vaga influência rítmica local,
tomada de empréstimo ao gosto e às formas populares, a cantiga de amor
galaico-portuguesa pouco ou nada acrescenta ao trovadorismo provençal.
Já
a cantiga de amigo é uma forma original que atesta a maturidade da cultura
ibérica nos séculos XII e XIII. Tão madura que era capaz de reelaborar a sua
tradição popular. De um lado, as carjas
moçárabes davam voz ao sentimento feminino, do outro lado, as mulheres do campo
cumpriam suas tarefas entoando cânticos anônimos.
As
cantigas de amigo dos trovadores galaico-portugueses não podem ser vistas,
ingenuamente, como “composições populares”, sob pena de esquecermos a formação
altamente qualificada de trovadores que nos legaram peças inesquecíveis.
Há,
sim, uma forte carga de ficcionalidade nestas peças, em que mesmo o homem de
vida palaciana, como el-rei D. Denis, por exemplo, transporta-se ao modo de
viver da gente mais simples. Há aí uma transposição não apenas de classe, mas
de sexo. Num alto grau de despersonalização, o trovador constrói a fala de uma
jovem vilã.
Enquanto
as carjas eram cantos anônimos
entoados por mulheres de origem mourisca, as cantigas de amigo eram obras
ficcionais nas quais o trovador recriava a mulher cristã de origem popular
falando do seu namorado. Temos portanto um avanço significativo, inclusive
fazendo com que estas composições ultrapassassem os limites do lírico para
conter fortes traços do épico e do dramático. Mas as cantigas de amigo são
peças que apresentam falas de personagens femininos através das quais se
estrutura uma narrativa.
__________________________
Poesia medieval. Artigo sobre a lírica medieval
ibérica no século XIII. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 03 mar. 97, p. 7; Lírica medieval (2), 10 mar.
97, p. 7.
* * *
Correspondências para esta coluna:
Rua Alberto Pondé, 147 / 103.
CEP 40.280-630, Salvador, Ba. Fone 351-8971.