A poesia
do decano
Bráulio
de Abreu, aos noventa e três anos de idade, é o decano dos poetas baianos. Como
nos tempos de antanho se dizia que antiguidade é posto, o decanato da poesia é
a láurea deste velho remanescente de um dos muitos movimentos e grupos
literários que enriqueceram a inquieta Bahia no início do século.
Bráulio
de Abreu e Nonato Marques são os dois últimos sobreviventes do grupo responsável
pela publicação da revista Samba,
surgida em 1928. Declaradamente modernista, mas essencialmente conservadora,
com traços parnasianos, a revista trazia no seu primeiro número um editorial de
Alves Ribeiro fazendo apologia do modernismo. Como, mesmo assim, o espírito
moderno não baixasse nos colaboradores de Samba,
o terceiro número, datado de fevereiro de 1929, trazia a proibição de receber
poemas em forma de soneto. (!)
Como
uma escola literária não se caracteriza apenas através das fôrmas, mas,
principalmente, a partir da substância das suas ideias, apesar do título da
revista estar em consonância com os vários modernismos regionais surgidos nos
fins da década de vinte, o grupo idealizador de Samba continuou embebido nas convicções parnasianas e ornamentais
da literatura palavrosa então em voga.
É
sintomático o fato de um dos seus destacados integrantes, Nonato
Marques, ter
abandonado a designação natural que identificava o grupo
com a revista, para
sugerir a expressão “os poetas da Baixinha”. Assim,
aquele que se tornou o
responsável pela divulgação e pela
fixação histórica da contribuição
dos seus
companheiros, preferiu uma designação menos comprometida
com a inquietação
modernista da época.
Era
em torno das mesas do “Café Progresso”, na Baixa dos Sapateiros, que se reunia
o grupo formado por Elpídio Bastos, Deocleciano Martins, Nonato Marques, Oto
Bittencourt Sobrinho, Souza Aguiar, Bráulio de Abreu, Alves Ribeiro, Clodoaldo
Milton, Antonio Donatti, Pereira Reis Jr., Egberto Ribeiro, Anfilófio Brito,
Queiroz Júnior, Zaluar de Carvalho, Raimundo Penafort, Ângelo Gomes da Costa,
Aníbal Rocha e Samuel de Brito Silva (o Guarda 85). Quando o poeta satírico
Pinheiro Viegas passou a integrar a confraria, a convite de Nonato Marques, o
centro constelar do grupo deslocou-se da figura do Guarda 85 para o irreverente
Viegas. Segundo Cid Mascarenhas, em palestra proferida no Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia, Pinheiro Viegas “com seus epigramas venenosos e
comentários chistosos, verdadeiras verrinas, foi afastando os componentes da
então coesa turma”.
Na
mesma época, um outro grupo formava a chamada elite intelectual da cidade. Os jovens
Pinto de Aguiar, Hélio Simões, Carvalho Filho e Eurico Alves, com o apoio do
crítico Carlos Chiacchio, fundaram a revista Arco & Flexa. Por vinculações sociais e intelectuais, os integrantes
deste pequeno núcleo mantinham laços de amizade com Godofredo Filho, Afrânio Coutinho,
Eugênio Gomes, Jorge Amado e outros jovens baianos de então.
Os
“poetas da Baixinha” continuaram à margem destes bem sucedidos jovens. Como
constata Nonato Marques, nenhum deles entrou para a Academia, instituição que
funciona como uma espécie de termômetro da elite intelectual.
Bráulio
de Abreu só foi notado ocasionalmente. Primeiro, por Arthur de Salles, que, segundo
o já citado Cid Mascarenhas, teria lhe dito, após ouvir a declamação de alguns
poemas: “A sua obra está à altura da minha”.
Mas
foi somente em 1980, quando Antonio Loureiro de Souza, no seu discurso de recepção
ao acadêmico Clóvis Lima, leu um soneto de Bráulio de Abreu, que o mundo
acadêmico tomou conhecimento da poesia deste velho alfaiate. Renato Berbert de
Castro convidou-o para uma das célebres tertúlias da sua casa. Lá, Bráulio leu
sonetos para o anfitrião e seus convidados Hélio Simões, Jorge Calmon, Jayme de
Sá Menezes, José Silveira, Erthos Albino de Souza, Thales de Azevedo, Carlos Eduardo
da Rocha, Luis Henrique Dias Tavares, José Calasans e Loureiro de Souza.
Com
a aprovação dos presentes, Berbert de Castro encarregou o professor Loureiro de
reunir os poemas de Bráulio de Abreu num livro a ser publicado pelo Conselho
Estadual de Cultura. Antonio Loureiro não só organizou o livro como escreveu
uma longa introdução. Dezesseis anos depois o trabalho continuava inédito,
tendo agora a Fundação João Fernandes da Cunha propiciado a sua publicação.
Alma profana
é portanto o livro de estreia deste veterano da poesia baiana, que somente aos
93 anos de idade chega ao público. Bem verdade que ele não é inédito. Aparece
em jornais e revistas, em estudos literários e principalmente em antologias
como Apóstolos do sonho, onde doze
sonetistas como Clóvis Lima, Ivan Americano, João Muniz, Carlos Benjamin
Viveiros e Nathan Coutinho comparecem com doze peças cada um; Coletânea de poetas baianos, organizada
por Aluísio de Carvalho Filho; Os mais
belos sonetos brasileiros etc.
Neste
livro, Alma profana, de Bráulio de
Abreu está reunida uma parte substancial da sua produção, onde o soneto de
inspiração parnasiana deixa, às vezes, escorrer da fôrma o “sentimento do
mundo” manifestado pelo decano dos poetas baianos. É precisamente nos instantes
em que a versificação é sobrepujada por um halo de vida que a poesia se deixa
plasmar em raios de luz.
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A
poesia do decano. Artigo crítico sobre o livro Alma profana, de Bráulio de Abreu. Salvador, Fundação João
Fernandes da Cunha, 1996, 192 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 11 nov. 96, p. 7.