O pitoresco e o saber
do mestre
José Calasans divide os documentos e estudos referentes a
Antonio Conselheiro e a Canudos em três etapas. A partir de 1874, com as
andanças de Antonio dos Mares pelos sertões da Bahia e de Sergipe, surgem os
primeiros registros escritos da atividade do peregrino que, com o passar do
tempo, ganharia no imaginário do povo os títulos de Conselheiro, Santo Antonio
Conselheiro e, finalmente, Bom Jesus Conselheiro. Com o crescimento na
hierarquia dos títulos religiosos, cresce também o alcance do fenômeno místico
encarnado pelo beato cearense.
A segunda etapa dos estudos canudenses começa com a
publicação do ensaio de Euclides da Cunha Os
Sertões, em 1902, obra que permanece por meio século como fonte dominante e
referencial quase exclusivo do tema. É a partir dos anos cinquenta que o
assunto é revisitado por centenas de estudiosos, constituindo-se a fase atual
dos estudos da temática.
O que o professor Calasans não diz é que, se a segunda
fase dos estudos sobre o fenômeno místico dos sertões da Bahia é iniciada pela
obra euclidiana, a terceira é marcada pelo trabalho de pesquisa do mesmo José
Calasans. Com a publicação, em 1950, da sua tese de Livre Docência, O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro,
ele assume a condição de primeiro estudioso universitário a constituir uma
linha de pesquisa e uma tradição de estudos canudenses.
A dedicação de todo uma vida a este trabalho permitiu ao
mestre sergipano e professor emérito da Bahia, reunir o mais completo e mais
importante acervo documental do mundo sobre a temática. Estudiosos brasileiros
e estrangeiros recorrem a José Calasans como fonte e autoridade incontestável
no assunto. Especialista maior, ele traz consigo uma característica que aumenta
ainda mais a sua importância: a humildade intelectual. Falando ou escrevendo
sobre o tema, José Calasans jamais assume a postura do mestre, do acadêmico
emproado, mas transmite importante saber e conhecimento precioso no mesmo tom
de conversa com que um sobrevivente de Canudos rememoraria o que viu. Sua
escrita recusa o lugar de poder dos enunciados e constrói uma enunciação onde o
diálogo informal com o leitor ou o interlocutor divide a reflexão.
Um traço de prestígio da escrita universitária é o tom de
escritura sagrada, de autoridade inconteste, onde a reflexão e as conclusões
mais simples são revestidas de tortuosa complexidade. A escrita de José
Calasans foge desta arapuca como o capeta foge da cruz. O erudito professor
escreve seus ensaios, artigos e conferências como se fosse um ficcionista. Um
ficcionista que elegesse para narrador do relato um homem simples, uma
testemunha dos fatos.
Deste modo, os resultados da pesquisa de José Calasans
não se destinam a prestigiosos e insossos relatórios acadêmicos, lidos de viés
e com enfado. A transmissão do seu saber ganha a forma de uma conversa, de uma
prosa imaginária, sob a fresca de um umbuzeiro, em tarde amena. O pitoresco e o
agradável encobrem e dissimulam o labor exaustivo da pesquisa, tornando a
leitura atraente.
Os escritos do mestre canudense evidenciam, além da
presença do pesquisador, a do contador de histórias, do escritor. Tornar
simples o complexo, dizer um emaranhado de ideias em curso como se diz a coisa
mais evidente é dom de poucos. É o dom dos mestres.
Convém lembrar que o médico vienense Sigmund Freud,
quando propôs ao mundo acadêmico um sistema científico que ultrapassava os
limites da medicina e se inscrevia como um novo sistema filosófico, teve que
abandonar o jargão acadêmico para assumir uma linguagem simples mas bem urdida.
Esta linguagem conquistou para o autor o prêmio Goethe, um prêmio de
Literatura, antes mesmo que a eficácia da sua escrita impusesse a revolução
copernicana das suas descobertas. Isto é, antes que o discurso freudiano
conquistasse para as teorias do dr. Freud um espaço no mundo científico. Ainda
hoje, muito doutorzinho palavroso lê Freud com o estranhamento de quem lê uma
obra literária. Nada de fórmulas, de matematização lacaniana, nem das
complicações dos seguidores de menor talento. O escrever bem basta.
A escrita criativa de Freud foi lembrada a propósito do
estilo deste pesquisador sertanejo que é o mestre Calasans. Além de não se
arvorar a dono do tema, de dividir com quantos queiram a tarefa que precisa de
muitos tarefeiros, ele divide também os méritos do achado. Tem se tornado um
tanto comum o hábito desonesto dos pesquisadores de não dar relevo a figuras
não exponenciais que lhe serviram de fonte. Cita-se ou evidencia-se, apenas, o
já evidente. Quem já ouviu as conferências ou leu os artigos de José Calasans,
deve lembrar como ele relata as suas descobertas. Não se esquece de mencionar o
mais anônimo morador de uma cidadezinha qualquer que intermediou ou
compartilhou a sua descoberta. Assim o edifício é construído por várias mãos,
Calasans trabalha com o desprendimento do verdadeiro mestre; que não quer para
si o saber, mas divide com todo aquele que queira aprender.
Daí a importância da publicação do livro Cartografia de Canudos, reunindo vinte e
três textos de natureza diversa, desde conferências e comunicações a
congressos, proferidas por José Calasans, até ensaios e pequenos artigos de
jornal.
Há muito tempo que a bibliografia do tema exigia a
reunião de textos dispersos do estudioso José Calasans num volume de fácil
acesso. Segundo relato do presidente do Conselho Estadual de Cultura, Waldir
Freitas Oliveira, este livro nasceu de uma proposta inicial do historiador Luís
Henrique Dias Tavares de republicar O
ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro. Mais ambicioso, o professor
Waldir Freitas quis juntar à tese pioneira do José Calasans outros trabalhos,
mas o autor preferiu compor o volume com o material que agora se lê.
Cartografia de
Canudos, de José Calasans, é uma publicação da Secretaria de
Cultura e Turismo que integra a “Coleção Memórias da Bahia”, sob a orientação
do atual presidente do Conselho Estadual de Cultura.
O pitoresco e o saber do mestre. Artigo crítico sobre o
livro Cartografia de Canudos, de José Calasans. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 22 set. 97,
p. 7.
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