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Fernando Pessoa

e a música

        

Todo poema, escrito para ser ouvido ou para ser lido em silêncio, tem seu próprio ritmo, sua própria música mostrando-se resistente às tentativas de musicalização. O ritmo do texto é parte do seu sentido, do seu dizer. Assim, atribuir uma música ao texto é atribuir um sentido às vezes estranho ao significado até então possível.

Originalmente, quando os homens ainda não usavam a escrita, poesia e música constituíam uma única arte. Os poemas eram feitos para serem cantados e não para serem lidos ou declamados. Quando estas duas artes se tornaram independentes, o poema passou a constituir o seu ritmo em função da declamação ou da leitura silenciosa, da sugestão visual proposta pelos espaços em branco do papel. Deste modo, a maior parte das tentativas de reintegrar música e poema resulta em verdadeiros monstros. Mesmo compositores de talento não conseguem dar ao poema uma música que lhe é estranha.

As melhores canções de Vinícius de Moraes foram escritas como canções, isto é, concebidas em função de uma música sua ou de outro compositor. Seus poemas escritos para serem lidos, mesmo os melhores sonetos, quando musicados, não obtiveram a mesma aceitação. Havia qualquer coisa de incompleto, de falso. Há textos que dependem da música da própria língua, rejeitando portanto uma outra música.

O mesmo se deu com Fernando Pessoa. Compositores do porte de Tom Jobim, Dori Caymmi, Edu Lobo, Francis Hime, Arrigo Barnabé, Milton Nascimento e outros se uniram para produzir o disco A música em pessoa, lançado pela Som Livre a partir de um projeto conjunto da Fundação Gulbenkian e da Fundação Roberto Marinho. Mesmo reconhecendo a excelência do trabalho, o disco não vingou. A gente ouve uma, duas, três vezes e não quer ouvir mais. Há qualquer coisa faltando, ou qualquer coisa sobrando. É a sensação que se tem.

Estes compositores falam do seu próprio universo, traduzem suas próprias vozes, formando ruídos dissonantes às vozes dos poemas de Pessoa. Mesmo com todo o empenho não se dá a parceria, a cumplicidade, entre o autor da música e o autor do texto. Duas obras distintas são enfiadas numa mesma camisa de força. Dois hóspedes estranhos dividem um mesmo quarto de pensão.

Na mesma época em que conheci este trabalho grandioso, conheci também um outro, mais modesto. Um só compositor, desconhecido, sem os recursos de um Antônio Carlos Jobim ou de um Edu Lobo, fez sozinho as dozes músicas para um disco em parceria com Fernando Pessoa.

Ouvi com desconfiança, com má vontade, depois de ter ouvido o outro disco. Mas a desconfiança e a má vontade foram desaparecendo porque nas músicas compostas por André Luiz Oliveira eu ouvia Fernando Pessoa. É como se este desconhecido compositor baiano tivesse ido a Lisboa e se sentado ao lado de Fernando Pessoa, numa mesa da “Brasileira do Chiado”; e com ele tivesse tomado muitos copos de bebida, trocado palavras e sentimentos para juntos “viajarem” algumas canções -  como o nosso Vinícius chamava o ato de compor em parceria.

Estranhamente, André Luiz Oliveira e Fernando Pessoa resolverem compor juntos as músicas para Mensagem, o livro mais difícil de Pessoa, o mais emblemático, mais complexo. Não é que a cumplicidade assumida entre os versos de Pessoa e a música de André traduziu o texto para a sensibilidade dos nossos dias e das nossas circunstâncias?

O resultado obtido no disco Mensagem é verdadeiramente surpreendente. Estamos diante de doze composições de André Luiz Oliveira e Fernando Pessoa, onde um não briga com o outro, mas se unem harmoniosamente.

É desta parceria, deste identidade buscada pelo músico com o poeta que nasceu o espetáculo musical Mensagem, a ser apresentado nesta quarta-feira, dia 23, no Teatro Castro Alves, numa audição única.

Muito embora este espaço de jornal seja exclusivamente dedicado à crítica literária, permita o leitor a exceção. Permita que se fale de um trabalho unindo música e poesia, dando testemunho da qualidade das composições de André Luiz Oliveira.

O espetáculo trazido à Bahia como atividade beneficente, com a renda destinada às obras do CEPARH, é formado, além do autor das músicas, por Cláudio Vinícius (teclados, voz e viola), Orcello Mendonça (violoncelo e flauta), Glória de Lourdes (fadista), Elinton Bettes (guitarra portuguesa) e Cida Moreira (voz e piano acústico).

Trata-se, portanto, de um presente que todos nós temos o dever de nos dar: participar deste momento de culto à sensibilidade e ao prazer.

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Fernando Pessoa e a música. Artigo sobre os poemas de Mensagem, de Fernando Pessoa, musicados por André Luis Oliveira. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 21 out. 96, p. 7.
































 
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