O fim da democracia
Cientista político do Ministério das Relações
Exteriores da França, Jean-Marie Guéhenno sistematiza neste seu livro um
conjunto de ideias mais ou menos compartilhadas por outros observadores, embora
pareçam, simultaneamente, originais e pouco lógicas, quando formuladas de modo
apressado.
A tese defendida de que o próximo milênio marca o
fim da democracia e dos estados nacionais parece, à primeira vista, uma das
tantas formulações sensacionalistas produzidas por uma bem sucedida camada da
inteligência norte-americana, pródiga em novidades e pobre de fundamentos. Mas,
acompanhado atentamente, o raciocínio do autor vai por outros caminhos,
distantes do frisson superficial dos
americanos, quando o assunto exige abstração, como via de regra são os temas
das ciências humanas. Os franceses são menos chegados ao arrepio e mais
propensos à reflexão.
O desmoronamento da unidade soviética em face aos
nacionalismos do leste europeu contradiz a tese defendida em O Fim da Democracia, mas não esqueçamos
que estes países se mantiveram à margem do processo de evolução do mundo
capitalista. E o raciocínio de Jean-Marie Guéhenno é aplicável ao
desenvolvimento do capitalismo. A história recente dos povos subdesenvolvidos
mostra como o sentimento nacional manifestado nas lutas contra a dominação
colonialista começa a adormecer diante de uma aparente liberdade nacional.
Hoje, os povos das antigas colônias não mais se voltam conta a metrópole
opressora, porque o domínio é menos tangível. Não é que estes povos tenham se
tornado soberanos e verdadeiramente livres, mas a velha forma de domínio
desapareceu. Como brasileiros, conhecemos a história do nosso país e, a partir
dela, podemos compreender muito bem o problema. Independente de Portugal, o
Brasil entrou numa guerra absurda contra o Paraguai para defender interesses do
capitalismo inglês. A indústria e o poderio comercial dos ingleses nos
dominaram por muito tempo, até que os norte-americanos decidissem o nosso
destino, como na derrubada do governo João Goulart.
Em todo o mundo, o quadro é mais ou menos o mesmo.
Agora, quando o ocidente não mais está submetido à guerra fria e quando uma das
potências não precisa se preocupar com a passagem dos seus “aliados” para a
influência do adversário, a dominação é menos palpável e mais eficaz. Se por um
lado, os Estados Unidos não podem justificar aos “democratas” a invasão de
pequenos países, por outro lado, os povos agredidos não mais têm como escapar
da sua influência. A trajetória da revolução cubana seria simplesmente
impensável no mundo de hoje.
O que é bom para
os Estados Unidos é bom para o Brasil – foi a frase síntese
dos defensores da nossa submissão àquele país, a partir dos anos sessenta.
Hoje, a ideologia pan-americana é bem mais ambiciosa...
Mesmo admitindo-se um equilíbrio de forças, a partir
da união europeia e do crescente poderio do Japão, os países pequenos não estão
a salvo do domínio dos mais fortes. Segundo Guéhenno, “As nações descolonizadas
se libertaram do julgo colonial para caírem em outra servidão, aquela que lhes
é imposta pelas organizações internacionais, pelo Banco Mundial e pelo Fundo
Monetário Internacional.”
Se ontem as multidões iam às ruas protestar contra a
administração colonial e depois contra as multinacionais, hoje os setores
politizados da sociedade se voltam contra ajustes econômicos, políticas
cambiais irrealistas, alienação de fontes produtivas de riquezas etc.
Isso quer dizer que o poder é cada vez mais
transferido para os grupos econômicos. Um sólido conglomerado de empresas pesa
mais do que algumas nações nas quais elas estão instaladas. O poder invisível
dos cartéis e dos agrupamentos financeiros envolve e aprisiona com suas teias o
cada vez mais frágil estado nacional.
Se no mundo feudal a terra era importante e o senhor
de mais posses transformava-se no rei, este poder foi passando para os
burgueses enriquecidos pelo comércio. Hoje, a riqueza econômica não mais
depende da riqueza territorial, como bem demonstra o bem sucedido exemplo
japonês.
O domínio agora é menos palpável. O dominador não
precisa estar numa nação e dominar outras nações. Cada vez mais ele se instala
no território a ser ocupado e forma aliados entre os políticos e governantes.
Assim a dominação a partir do ano 2000 não mais será necessariamente de uma
nação sobre outra nação, mas de poucas pessoas enriquecidas sobre hordas de
pessoas empobrecidas.
Governos eleitos por expressivas maiorias se
integram cada vez mais no grupo dos senhores do império invisível,
desenvolvendo políticas sociais claramente destinadas a atender aos interesses
dos detentores do capital. Esta é a modernidade a que muitos países aspiram.
Esta foi a meta entusiasticamente defendida por Fernando Collor de Melo e que
levou as mais expressivas forças econômicas do país a aprovarem a sua
candidatura. Quando o seu governo cedeu a negociatas necessariamente atreladas
a estas forças, o projeto ruiu e foi necessário a conversão de um político
saído do centro-esquerda para que os interesses do “economia de mercado” fossem
preservados.
É por isso que Guéhenno reserva para a nova era o
nome de imperial, ressaltando tratar-se de um império sem sede e sem imperador,
onde o poder de autogerir-se foge cada vez mais aos cidadãos, cuja influência é
reduzida ao cumprimento de papéis previamente estabelecidos pelos mecanismos
sociais.
Dentro deste nova organização, os lobistas, os
representantes dos grupos financeiros têm lugar de destaque e o suborno deixa
de ser um intruso no campo ético para tornar-se compensação pela capacidade de
prestar serviços especializados que facilitam a atuação dos chamados clientes
preferenciais. Esta é a lógica da eficiência, onde o capital é o bem supremo. É
impossível seguir o jogo do capital fugindo das regras geradas por este jogo.
Quando a noção de riqueza torna-se menos concreta,
os valores também entram em crise. Se a riqueza se ligava ao material
produzido, hoje ela reside no domínio de técnicas e dados precisos. O automóvel
que marcou o nosso século exigia um investimento de quase metade do seu preço
no material empregado. A eletrônica que prepara o século vindouro reserva
apenas um por cento do seu preço para o material produzido. O restante da
riqueza está em elementos abstratos e imateriais. Está no poder de informação
de cada chip e nas descobertas exclusivas do seu fabricante. Por outro
lado, numa simples peça do vestuário este custo abstrato é maior do que o custo
da matéria prima. O valor da marca é o que conta. Algumas empresas vendem o seu
nome a outras empresas associadas. Este é o capital acumulado, a riqueza
imaterial que modifica as relações econômicas. Estas formas de poder assumem o
lugar do estado, diluindo o centro de decisões.
O estado nacional é impotente diante do poder
econômico que se ramifica por vários países e se torna senhor dos indivíduos
bem sucedidos. Os políticos ditos modernos são bastante liberais com relação às
pretensões deste poder do capital. Eles sabem que os dias dos seus
estados-nações estão contados e já se apressam em adquirir uma nova cidadania:
a cidadania do mercado.
O livro O Fim
da Democracia demonstra de forma convincente como cada vez mais somos
impotentes para decidir os nossos destinos e como as grandes redes operam e nos
transformam em componentes de um circuito integrado. A modernidade liberal aponta como conveniência associar-se a isto.
Nós, os pré-históricos, ainda
acreditamos em outras saídas. Mas segundo Jean-Marie Guéhenno este grande
império sem imperador que o capital institui no mundo não é uma ideologia, é um
processo. Inexorável.
O sonho acabou. E a gente nem sequer sonhou.
O fim da democracia. Artigo crítico
sobre O Fim da democracia, de Jean-Marie Guéhenno. Rio
de Janeiro, Bertrand Brasil, 132 p. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 13 jul. 98, p. 7.
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Leitura
Crítica
é publicada todas as segundas-feiras,
na página 5 do
segundo caderno de A TARDE.
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