|  Abertura  |  Leitura Crítica  | Ler Nossos E-Books  |   Livros Impressos  |   Cronologia de Publicações  |  Artigos  |  Sobre o Autor  |






























A NATUREZA DO TEXTO

 

– O que distingue o texto literário do texto científico? O que permite a alguém reconhecer que está diante de uma obra de arte verbal e não de uma obra de informação do saber?

São perguntas que geralmente o leitor se faz como ponto de partida para a compreensão de obras literárias, como um romance, um conto ou um poema.

+   +   +

Mas, antes de se responder, este leitor precisa ter em mente o que entende por literário e por literatura. Como se sabe, a expressão vem de littera, letra, modo de escrever, ou mesmo, carta. A partir daí, literatura seria tudo que é escrito, como bula de remédio, bibliografia sobre doenças, anúncio de cartomante e até livro de pretenso poeta municipal. Com uma sutil diferença – a inicial maiúscula –, Literatura seria, para alguns estudiosos, a arte da escrita criativa. Ou o conjunto de obras artísticas de natureza verbal.

Mas, nem sempre, os estudiosos estiveram de acordo entre si, quanto à observação deste critério definidor. Na idade média, por exemplo, quando a escrita era uma arte dominada por poucos, quase tudo que era escrito se confundia com literatura.

Ainda hoje, a Literatura Brasileira inclui no seu acervo textos como a Carta de Pero Vaz de Caminha ou os vários tratados e impressões de viajantes do século XVI sobre a terra descoberta. O leitor poderia concluir que escritor é todo indivíduo que escreve, não importa o quê, se tratados de botânica, manuais de ética ou histórias de ficção.

Supondo que o leitor considere literatura, mesmo escrita com inicial minúscula, como apenas a obra de arte verbal, podemos estabelecer algumas distinções básicas entre a linguagem literária, de natureza estética, e a linguagem científica, de natureza pragmática. Tais distinções valem ainda para outras modalidades de discurso, como o informativo, o emotivo, o coloquial etc.

+    +    +

O texto literário é antes de tudo um jogo de linguagem, no qual esta pode aparecer tanto quanto o próprio conteúdo veiculado. Como esta linguagem artística é opaca, isto é, retém o olhar sobre si, antes de conduzi-lo ao objeto retratado, ela aparece como parte do objeto. Já o texto destinado a ensinar, a comunicar o saber da ciência, é uma modalidade de discurso informativo onde a linguagem é transparente, permitindo que a atenção do leitor atravesse as palavras e frases e veja de forma clara aquilo que é informado. Como o objetivo é mostrar algo, é explicar um conjunto de saberes, a linguagem científica é transparente – invisível aos olhos que buscam um objeto definido.

Neste ponto, o texto literário se opõe a diversas modalidades de texto, quer sejam elas científicas, informativas ou pragmáticas. Estaria um tanto próximo do texto coloquial, como a fala do dia-a-dia, bem mais complexa do que as outras, porque contém em si a semente e a soma de todos os registros do falante. Ela, a linguagem do dia-a-dia, é um pouco científica, informativa, e um pouco inventiva, artística. É pragmática e também emotiva, especulativa – lúdica. É da sua riqueza esquecida por entre as frases cotidianas que se constróem os primeiros jogos de sentido da arte verbal. É no saber arcaico da linguagem coloquial que se procuram as pedras que servem de base para as torres da dicção artística.

No texto literário a linguagem é opaca; ela não apenas refrata, distorce ou redimensiona o objeto, como retém o olhar sobre si mesma, compartilhando a atenção do leitor com o objeto que constitui o plano do conteúdo da obra. A tessitura do texto não permite de pronto visualizar o objeto focado, assumindo o lugar de extensão complementar. Retomando a divisa de McLuhan, pode-se dizer que no texto literário o meio é a mensagem. O veículo da mensagem transmitida, isto é, a linguagem, já traz em si mesma muito daquilo que se diz. Se no discurso objetivo a fidelidade ao objeto da mensagem evita a dispersão do olhar; no discurso literário, que é também uma modalidade de discurso subjetivo, o olhar passeia por entre as dobras da linguagem, retirando dela sentidos subsidiários que enriquecem a mensagem original. Daí, o meio tornar-se mensagem.

Não esqueçamos que o texto científico utiliza uma linguagem denotativa, isto é, que propõe uma direção única de significados, conduzindo o leitor a um só feixe de interpretação. O que importa aí não é a linguagem e suas revelações subsidiárias, mas o objeto ao qual ela se refere de modo direto, transparente, objetivo. Já o texto literário utiliza uma linguagem conotativa, isto é, que sugere um leque de possibilidades interpretativas, onde a textura das frases resvala em sentidos outros, em restos de saberes antigos e novos escondidos por entre as frestas da frase. As múltiplas interpretações abertas pelo texto literário convidam à participação ativa do leitor: sua experiência de vida, sua sensibilidade e sua bagagem afetiva e intelectual constituem cadeias de relações dos seus conhecimentos com as projeções da obra lida.

Como a linguagem literária é conotativa, ela consegue traduzir um universo de possibilidades bastante amplo e, ao fazê-lo, atribui novos sentidos, constrói novos objetos, formados pelo redi-mensionamento dos objetos dados. Ao renovar expressões gastas pelo uso, a linguagem literária também renova ou reforma seus conteúdos – os objetos referidos pelas expressões. Naturalmente, a linguagem não renova o objeto do mundo natural em si, mas a compreensão que o homem tem desse objeto. Não esqueçamos que essa compreensão, que essa imagem, é que se torna o verdadeiro objeto do mundo social, do mundo dos homens, enquanto espécie de animal simbólico.

Se o texto científico quer explicar, informar e enformar o mundo conhecido, dando a ele uma forma transmissível ao leitor, o texto literário quer descobrir o desconhecido. O texto científico é informativo: dá conta de algo que se sabe e que se transmite a alguém. O texto literário registra uma viagem exploratória: ao mesmo tempo em que tenta descobrir, permite ao leitor acompanhar o processo de descoberta.

Neste sentido ele é primitivo, como o mito. O mito é um discurso que descobre e, ao mesmo tempo, tenta compreender os mistérios do mundo. O texto literário seria então uma espécie de mito individual que o homem moderno continua cultivando como modo de retomar as coisas pela origem, pelo princípio.

O centro é deslocado, copernicamente, dos fenômenos naturais para os fenômenos humanos propriamente ditos. Assim como o analista não se interessa pelo que fatualmente aconteceu, mas pelo que o discurso do analisante anuncia; não são os fatos efetivamente ocorridos que constituem e determinam a vida psíquica do homem, mas aquilo que o homem faz destes fatos ou da ausência dos mesmos. Não é um fato objetivo, ou melhor, um fato real, que é o responsável pelo trauma; mas um fato imaginário, que redimensiona e reescreve a realidade.

As disciplinas e ciências mais diversas são obrigadas a repensar continuamente o conceito de real, abandonando a ideia de uma realidade absoluta dada ao homem, pronta e imutável, em favor da concepção da realidade como fruto de um acordo capaz de conferir tal estatuto a um conjunto de fenômenos eleitos como balizadores do real.

Podemos chamar a esse conjunto de ações e pontos de vista, instituídos e aceitos pela cultura, ou a essa realidade socialmente construída, de espaço de convenção. Assim, procuramos sublinhar que se trata de uma eleição, de um contrato social, que convenciona o que devemos entender por realidade e o que devemos expulsar dos seus limites para garantir a condição de “normalidade” à nossa percepção do mundo.

Fechando o círculo, mesmo falando de outros fatos, retornamos à estrutura do mito. Objeto eminentemente cultural, o mito interpreta e constrói os objetos necessários às práticas e anseios de um grupo cultural.

________________

Artigo teórico sobre a natureza do texto literário, em oposição ao texto científico. A Tarde Cultural. Suplemento literário do jornal A Tarde. Salvador, 17 jan. 98.





































 
O site Linguagens foi planejado e executado pelo seu responsável. Emails: cidseixas@yahoo.com.br | cid@ufba.br
 

  |  Abertura  |  Leitura Crítica  | Ler Nossos E-Books  |   Livros Impressos  |   Cronologia de Publicações  |  Artigos  |  Sobre o Autor  |
        
Este site foi construido e disponibilizado no mês de outubro de 2016.