maniqueísmo
ou partidO
A
tradução brasileira de O visconde partido
ao meio, de Italo Calvino, lançada o ano passado pela Companhia das Letras,
chega até nós quarenta e quatro anos depois do livro ser publicado na Itália. O
fato é explicável porque somente há poucos anos o autor alcançou renome
internacional e consequente audiência no Brasil.
Apesar
de até então esquecido ou desconhecido do público brasileiro, este pequeno
romance é um dos melhores livros do autor. Ele tem lugar de destaque por um
fato singular: é uma obra comprometida com o prazer do leitor. O intuito de
divertir prepondera sobre o ético, o social etc., sem abrir mão destes outros
objetivos porventura presentes numa obra de arte. A questão é velha: muitos
escritores e alguns leitores sisudos insistem no caráter pragmático da arte,
como se ele tivesse que cumprir uma função social altamente elevada. Como se o
artista devesse se investir nas funções de pontífice e proclamar novas
verdades.
Todo
artista tende a supervalorizar a natureza da sua própria arte, como se ela
fosse a atividade mais importante já concebida pelo homem, e alguns insistem
nesta paranoia de grandeza a ponto de se julgarem responsáveis pela condução
ética de todo o povo.
Alguns
artistas foram mais humildes, como Gil Vicente, por exemplo, no caso na cultura
de língua portuguesa. Vivendo o momento de inquietação intelectual que construiu
o renascimento, ou a transição do mundo medieval para o mundo moderno, ele sabia
que o seu teatro deveria primeiramente agradar o público, divertir a nobreza.
Conseguido este objetivo, ele poderia tentar voos mais audaciosos: ridendo castigat mores. A ambição de
corrigir os costumes estava disfarçada na alegria do riso. Daí a sua eficácia.
A
propósito deste livro, O visconde partido
ao meio, Calvino escreveu um profissão de fé que convém repetir e lembrar
sempre que possível: “Penso que o divertimento seja uma coisa séria.”
A
partir das lutas entre cristãos e turcos, no século XVII, o autor constrói a
trama do livro, centrada na figura de um nobre senhor de terras e gentes. O
visconde Medrado di Terralba, improvisado cavaleiro, arremete contra os forças
inimigas e quase é estilhaçado por um tiro de canhão. Uma parte do visconde é
recolhida ao hospital da tropa e, miraculosamente, consegue sobreviver com um
só braço, uma só perna, meia boca e um único olho. Os médicos, todos contentes: que maravilha de caso.
Para
os moradores de Terralba, a mutilação do senhor foi um fato desastroso. O lado
ruim do visconde é que ficou vivo e voltou aos seus domínios. O visconde
partido ao meio cavalgava espalhando pânico e terror pelos vales e penhascos,
até que os camponeses se viram confusos com as contradições de Medrado. Ora se
divertia com crueldades, ora fazia o bem de modo surpreendentemente generoso.
Seria a outra parte do visconde – a boa – que estava de volta?
As
peripécias dos dois senhores de Terralba dividem os moradores do lugar e divertem
o leitor. Divertem, a partir de considerações éticas, políticas, práticas, que
necessariamente precedem o riso provocado. Se a nossa cultura, a cultura
cristã, se sustenta numa forma de maniqueísmo onde só um lado do homem
prevalece, na história contada por Calvino o cavaleiro cristão volta da guerra
aos turcos literalmente partido ao meio. Com o artifício, nosso mundo
fragmentário é exposto de forma exemplar. Nossa crença em que o homem é a
imagem e semelhança de deus, com suas virtudes e qualidades, termina
construindo uma outra espécie de homens, onde cabem os vícios e defeitos; são
os maus, à semelhança do diabo. Assim o homem desconhece a si mesmo e, para ter
paz, deixa de ver a face obscura do seu ser. Ignorada, ela é mais livre para
fluir.
Nossa
cultura religiosa e moral divide os homens e os demiurgos em divinos e diabólicos,
em bons e maus, enquanto a natureza nos faz a partir do conflito de forças opostas.
É deste conflito e da consciência social que nasce a escolha, a fixação em uma
das margens do rio. A fábula de Calvino cria uma bipartição mais insólita ainda
do que esta, assegurando a dicotomia maniqueísta através da divisão física do
personagem e expondo aos nossos olhos as insólitas construções a que chamamos realidade.
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Maniqueísmo
ou partido. Artigo crítico sobre o livro O
visconde partido ao meio, de Italo Calvino. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 24 fev. 97,
p. 7.