MALDIÇÕES
DO COTIDIANO
Um traço
marcante deste romance de Paulo Wainberg é a prática de repensar, ou de
refazer, a linguagem ficcional no âmbito do próprio discurso narrativo. Este
ato de rever a linguagem do romance resulta na escolha de uma perspectiva
experimental do texto, pondo o leitor em estado de suspeita e apreensão que se
desfaz ao longo da obra, quando o envolvimento com a trama promove a
familiaridade do inesperado dizer.
O livro é
narrado em primeira pessoa, no chamado plural majestático, frequentemente usado
em correspondências burocráticas e em artigos e ensaios, provocando assim o
estranhamento do leitor, que se inquieta para descobrir as razões da escolha.
Mas é o perpassar da ironia que se fixa como marca deste uso do plural,
especialmente pelos acontecimentos que constituem a primeira cena narrada, que
é introduzida assim:
–
”Caminhávamos furtivamente por uma das ruas centrais quando assistimos a uma
brutal cena de espancamento.”
Este mesmo
advérbio, “furtivamente”, é repetido ao longo do livro para adjetivar as
incursões do personagem-narrador pelo cotidiano da cidade. Desta cena primeira,
nasce a paixão do herói da narrativa por uma personagem que será motivo de
algumas peripécias da trama. O espancado era “um bem nutrido menino de quatro
anos e o espancador sua encantadora mãe de uns vinte e oito, olhos imensos,
coloridos, cabelos revoltos e pernas simplesmente divinas.”
Nesta breve
caracterização já se delineia muito da intenção do personagem e dos futuros
acontecimentos do livro, embora o leitor fique perplexo, sem saber como se
situar. Tal cena aparece a partir do quarto parágrafo, enquanto os anteriores,
que abrem o romance, nos recepcionam como se fossem o introito de uma exposição
conceitual. Estes quatro parágrafos iniciais prenunciam um tratado de
psicologia social ou de uma incerta teoria do autoconhecimento. Deste modo,
entramos no universo ficcional de Paulo Wainberg de maneira tão incerta e
confusa quanto o universo psíquico do seu personagem. Os caminhos que
percorremos suspendem as nossas diretrizes e quase certezas habituais para
instalar um estado de inquietação que nos aproxima do inominado protagonista.
Mesmo em
condições de conhecer o personagem e seus labirintos interiores não ficamos
sabendo o seu nome. Ele não nos diz; fazendo desfilar, apenas, as suas
reflexões; seus gestos de homem comum, marcado pela incomum individualidade das
anônimas figuras do cotidiano.
Na verdade, acompanhando o fio condutor da
trajetória do protagonista-narrador de Os malditos vemos
desfilar diante dos nossos olhos, como numa viagem a bordo de um trem que
percorre paisagens inesperadas, os desencontros humanos, com suas mesquinhas
tragédias, seus medos e fantasmas. São universos humanos díspares que aparecem
no romance, desde o cotidiano de um ocioso homem comum até os incertos
horizontes da família de um perigoso assaltante e latrocida.
Mas a
narrativa cresce à proporção que o fim do livro vai chegando, para ganhar nas
últimas páginas as dimensões de uma obra densa e capaz de figurar entre os bons
momentos da nossa narrativa de ficção. A ironia, que no início do livro parece
conviver com uma pitoresca superficialidade cotidiana, por fim, cede lugar ao
destino e à condição do homem. O leitor sai das páginas do romance de Paulo
Wainberg gratificado pelo encontro com este tortuoso narrador-protagonista, que
fala por si e pelo silêncio do outro.
* * *
O autor de Os
malditos, publicado pela editora Tchê!, de Porto Alegre, é o mesmo Paulo
Wainberg de O Carrilhão quebrado, ou de O homem de papel,
Conversa de verão e A resposta final. Este gaúcho faz parte de
uma geração de romancistas e contistas que transformou Porto Alegre num
importante núcleo da ficção brasileira. Se na primeira metade do século a
explosão regionalista dos nordestinos marcou definitivamente a literatura
brasileira, assim como os momentos posteriores foram ocupados pelo engenho
criador dos mineiros, agora Minas cede espaço para o Rio Grande do Sul. Neste
Estado acontece muito do que há de ficar como os bons momentos da literatura do
Brasil no final do século.
E o papel
desempenhado pelos gaúchos é mais notável ainda quando sabemos que eles
constituem não apenas um polo criador da literatura, mas também um
significativo polo receptor. O mercado livreiro do Rio Grande do Sul é hoje,
proporcionalmente, tão importante quanto o do eixo Rio-São Paulo. Nenhum estado
brasileiro, fora do chamado eixo central ou nacional, tem apresentado
resultados editoriais tão notáveis. Além de editoras nacionalmente conhecidas
como a Mercado Aberto, a L&PM ou a Tchê!, o Instituto Estadual do Livro
apresenta um trabalho que suplanta o do – falecido e de saudosa memória –
Instituto Nacional do Livro.
O Rio Grande
do Sul é hoje o país dos gaúchos, com um movimento cultural e editorial
próprio. Se avaliarmos o que se produz e consome em termos de livros dentro do
Estado, chegaremos à surpreendente conclusão de que o Rio Grande do Sul
apresenta índices nove vezes superiores ao do Brasil como um todo. Deste modo,
comparado ao nosso imenso país tropical, o pequeno Rio Grande tem um desempenho
similar ao dos países do primeiro mundo.
A história da
literatura brasileira que hoje se escreve abre um grande capítulo para conter o
universo dos pampas e o Porto sempre Alegre das naus da criatividade.
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Maldições do
cotidiano. Artigo crítico sobre o livro Os Malditos, de Paulo
Wainberg. Porto Alegre, Tchê!, 158 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 21 set. 98, p. 7.
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“Leitura Crítica” é publicada todas as segundas-feiras.
Correspondências para esta
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