O lirismo como expressão pessoal
Memória da chuva,
de Ruy Espinheira Filho, constitui, ao lado da sua Antologia poética, (publicada no ano passado pela Fundação Casa de
Jorge Amado), um dos momentos mais expressivos da poesia brasileira dos nossos
dias.
A
crescente audiência deste poeta, produto legítimo do seu momento e da atual circunstância
do país e do mundo, pode ser entendida como uma resposta eloquente da arte
poética às encruzilhadas do lirismo, cujos descaminhos, muitos de nós não
soubemos resolver.
A
partir da primeira metade do século, o lirismo deixou de representar a
expressão de uma individualidade privilegiada para esquadrinhar o território do
outro. Se, desde a velha Grécia, a lírica era aceita como manifestação da
subjetividade e rito de ascensão do sujeito ao centro constelar do mundo
social, o conceito de despersonalização destruiu a clareza das fronteiras entre
o lírico, o épico e o dramático.
Drummond
sentenciou, inapelavelmente: “Não faças versos sobre acontecimentos.” Isto
porque “as afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.”
Fernando
Pessoa levou esta explosão ao paroxismo com a dramatização do lirismo. Os
heterônimos são outros eus postos na
cena do teatro do ser. Através deste caminho radical, o eu do poeta dá lugar a
uma multiplicidade de sujeitos verossímeis que atuam como porta-vozes de todos
nós. Tal lírica não é mais a expressão do sujeito, mas um lugar de encontro com
todos os homens – e espaço da alteridade.
Depois
de estabelecida a ruptura com os modelos da lírica até então praticados e
consolidada a novidade é que vieram as vanguardas formalistas, cujo alcance da
revolução operada no âmbito da linguagem não ultrapassou o significante, ou a camada material da palavra. Demasiadamente
concreto, o tartamudear das vanguardas surgidas nos meados do século – como a
poesia concreta, a práxis etc. – não chegou ao plano do conteúdo do dito,
sempre abstrato e fugidio como o pensamento.
A
crise do lirismo se instaurou com a “impossibilidade” de expressar a
subjetividade do poeta. A efusão do eu lírico se dissolveu ao tropeçar naquela
pedra que havia no meio do caminho.
Ora,
o que caracteriza a poesia de Ruy Espinheira Filho é precisamente o choque com
esta noção de modernidade na lírica. Quando os caminhos considerados mais atuais
passam, de um lado, pelos monumentos da intertextualidade ou, do outro, pela hipertrofia
da valorização das camadas fônicas do verso, Ruy mergulha nos desvãos da
memória para retirar o lirismo pessoal e transferível.
Sua
matéria é o sentimento de um instante fugidio. É a observação de um pedaço de
mundo, visto pelas lentes dos seus óculos. É o tempo morto que não se perdeu,
guardado vivo na memória.
O
impulso memorialístico surge no escritor quando os novos fatos não mais surpreendem,
quando não têm a mesma intensidade e o mesmo brilho das coisas passadas, quando
a velhice se aproxima. Como alguns poetas não precisam esperar este tempo
crepuscular, em Ruy Espinheira Filho, a observação do mundo presente e a
recuperação do mundo passado são caudais que confluem para um mesmo estuário.
Leitor
voraz e atento dos livros e do mundo, este lírico deslocado num tempo de lirismo
raquítico, abre lugar para recuperar a força da subjetividade num mundo onde o
sujeito às vezes não conta. Onde a máquina realiza com eficiência e
neutralidade o que o homem constrói com envolvimento.
Com
o poder da palavra, esta velha arma branca que, às vezes, se transforma em
míssil de efeito remoto, o poeta abre clarões por entre os desvãos de um tempo
para plantar sementes de um outro tempo. O poeta transita para além da
temporalidade, munido de um passaporte irrecusável: o poder da palavra.
É
assim que Ruy Espinheira Filho reinstaura o lirismo e nos obriga a fazer
silêncio para escutar a sua voz. Tal convicção daquilo que tem para dizer
começa por cercar o seu dito de respeito. É assim que ele arranca do leitor
palavras de admiração:
“Ruy
é poeta que escreve no peito dos homens”, conforme Mário da Silva Brito. Ou
ainda: “Sua poesia é hoje uma referência importante na renovação que se
processa no lirismo brasileiro”, como Antonio Carlos Brito escreveu no Leia Livros.
Se
os movimentos e consubstanciações da arte e do pensamento obedecem a um
processo dialético, no qual uma nova síntese de vertentes e valores é a
recuperação de uma velha tese enriquecida pela sua antítese, podemos dizer que
o autor de Memória da chuva vai
buscar nos escaninhos da atemporalidade os materiais perenes da construção.
Neste diálogo de tempos superpostos ou nesta dialética de escrituras, Ruy
Espinheira Filho se permite atualizar a proposição de Manuel Bandeira no livro Libertinagem, que reúne poemas dos anos
vinte, como “Poética”, onde o modernista converso resiste ao sufocamento dos
clamores do sujeito.
“Estou
fato do lirismo comedido / Do lirismo bem comportando”, reclama Bandeira.
“Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbados / O lirismo difícil e
pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare”.
Não
estaria o poeta Ruy Espinheira Filho restaurando o lirismo liberto de Bandeira?
Nos primórdios do modernismo brasileiro, quando os padrões já desenvolvidos
pela lírica moderna desde o final do século passado atrofiam o lugar do
sujeito, poetas marcados pela exaltação lírica começam a protestar contra a
“orfandade de poesia” que a todos ameaçava. É a mesma opção pelo lirismo
enquanto voz do sujeito que alimenta a insurreição do autor de Memória da chuva e da exemplar Antologia poética.
Seu
ímpeto de nadar contra a corrente permite realizar uma poesia pessoal e transferível.
Transferível porque, ao alcançar a terceira margem do rio, aquela que a
correnteza guarnece, Ruy Espinheira aproxima as suas verdades das verdades do
outro. Liberta as palavras do seu peito para escrevê-las nas grandes muralhas
da razão e da sensibilidade dos homens.
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O
lirismo como expressão pessoal. Artigo crítico sobre o livro Memória da chuva, de Ruy Espinheira
Filho. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996. Coluna “Leitura Crítica” do jornal
A Tarde, Salvador, 14 abr. 97, p. 7.