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Histórias inventivas

 

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Domínio da arquitetura textual

permite a Luiz Ruffato

reinventar os velhos

contadores de histórias.

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"Toda história é remorso." A partir da epígrafe tomada de empréstimo a Carlos Drummond de Andrade, o mineiro Luiz Ruffato se propõe a contar suas Histórias de remorsos e rancores. São sete contos densos e bem construídos que reafirmam a qualidade da narrativa de ficção brasileira neste final de século.

Muito embora o mercado livreiro e a mídia não apostem muito no gênero conto, dezenas de contistas da melhor qualidade têm surgido nos últimos anos. O fato tende a reverter o quadro editorial, à medida que o público leitor descobre a riqueza desta floresta de histórias.

Convém afirmar que o conto é, por excelência, o gênero da pós-modernidade ou que outro nome se queira dar à era da navegação do espaço. A rapidez dos acontecimentos e o fracionamento do tempo entre múltiplas atividades transformam as narrativas longas em sedutores dinossauros criados em apartamentos.

Os leitores mais apressados experimentam uma impaciente angústia diante de novelas como Dom Quixote, de Cervantes, ou Em busca do tempo perdido, de Proust. Ficamos, maliciosamente, com dois exemplos polares.

O conto, por exigência do próprio gênero, conta com a agilidade, que pode ser comparada à leveza e à rapidez propostas por Ítalo Calvino entre as qualidades do texto literário a serem preservadas para o próximo milênio.

Histórias de remorsos e rancores, de Luiz Ruffato, é um livro marcado pela unidade formada pelas sete narrativas. As situações e personagens, na sua multiplicidade, podem estar situadas em qualquer lugar, inclusive ao nosso lado. São fatos banais e pessoas banais que reconstituem o acontecimento menos banal de todos: a vida. Mulheres e homem do nosso tempo, flagrados no cotidiano, com seus sonhos e misérias.

Mas as histórias de Ruffato não se passam nas ruas do mundo. Ele as situou num universo restrito e, ao mesmo tempo, amplo; porque elevado à condição de metonímia do espaço humano – o Beco do Zé Pinto. Que fica na Vila Tereza, que fica em Cataguases, que fica em Minas, que fica no mundo.

Além deste elo, ou desta unidade tópica, a entrelaçar as histórias, os personagens surgem num conto e reaparecem em outro. Vanin, que é protagonista de "A decisão" e sonha com o dia de ir embora para o Rio de Janeiro, aparece como simples figurante na história de outros moradores do Beco. Bíblica, ex-prostituta, mãe e mulher como muitas que conhecemos e admiramos, transita entre as histórias dos seus filhos. O pequeno mundo do Beco do Zé Pinto é o universo ficcional de Luiz Ruffato; um quase cortiço de Cataguases, com seus poucos personagens representado histórias dos nossos remorsos e dos rancores daqueles que não puderam ser protagonistas de uma vida plena.

Um fato a ser observado: as criaturas de Ruffato, todas vivendo as mesmas misérias e sonhos frustrados, não são erigidas à categoria maniqueísta de heróis nem de bandidos. São gente. Gente capaz de grandezas e misérias; de serenidade e desespero.

Ao reunir os caracteres para a constituição dos seus personagens, Ruffato lança mão dos materiais extraídos da vida. Por isso, eles são personagens plenos, previsíveis e imprevisíveis. É como se o criador destas histórias tivesse roubado do criador desconhecido o barro adâmico que, com sua força, inventa destinos múltiplos.

Mas para usar este barro, o criador de histórias e mundos precisa também saber usar um outro instrumento que foi o princípio de tudo – a palavra.

Sem exibir a retórica experimental dos recursos neobarrocos, tendência tão em moda entre os novos escritores, Luiz Ruffato pode fugir ao previsível de uma escrita original e sintonizada com o seu tempo. Como ele sabe usar a palavra certa para dizer o incerto, seu texto é de quem aprendeu a olhar devagar para as coisas e as palavras; descobrindo o segredo que há entre elas.

Isto não quer dizer que ele mergulhe na arqueologia do saber perdido e volte as cotas para o sabor do momento. Quer dizer apenas que alguns escritores não precisam de uma fantasia cibernética para usar os recursos extraídos das novas técnicas. Tradição e ruptura são etapas de um processo.

Partindo de uma estrutura narrativa clássica (ou básica, se preferirmos), ele não se esforça para ser original, moderno ou pós-moderno. Ruffato, simplesmente, é um escritor do seu tempo.

É este modo de ser, em lugar do modo de procurar ser, que confere qualidade e, principalmente, legibilidade, ao texto do autor. Mesmo nos trechos de invenção mais radical, o leitor acompanha seu percurso. Em alguns contos a fala do narrador penetra a dos personagens, o diálogo flagrado num tempo presente é arrebatado pelo monólogo interior do personagem ou por diálogos de tempos passados, numa vertigem de discursos que se produzem mutuamente.

Presente, remorsos passados, sonhos desfeitos e rancores futuros giram numa mesma frase – onde o narrador nos conta uma história – onde personagens dialogam e, ao mesmo tempo, revelam os desvãos da memória.

A passagem brusca de uma fala a outra, o corte de um cenário para outro no interior da mesma frase, como ocorre no discurso onírico, não são apenas experimentos na escrita de Luiz Ruffato, são recursos usados com precisão e técnica.

Quando muita gente pensa que só é possível acompanhar o risco do raio, escrito pela mão da linguagem, deixando para trás a história a ser contada, Ruffato reinventa o velho contador de histórias. Ele conta uma história com princípio, meio e fim, sem medo de ser repetitivo. Isto porque sabe penetrar na obscura dimensão do não dito, onde dormem as palavras. E trazer de lá a pedra da alquimia, para operar a transmutação dos pesados condutores da frase – feitos de chumbo – em fibra ótica, ou áurea.

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Histórias inventivas. Artigo crítico sobre o livro Histórias de remorsos e rancores, de Luiz Ruffato. São Paulo, Boitempo, 1998, 136 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 14 set. 98, p. 7.

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Correspondência para esta coluna:
Rua Alberto Pondé, 147/103 – 40.280-630
Salvador, Bahia


































 
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