Heróis e trapalhões
da história
A
Guerra do Paraguai, como é conhecida pelos brasileiros, ou a Guerra da Tríplice
Aliança, como é chamada pelos paraguaios, é motivo de desconfiança e triste
memória para muitos de nós. Neste conflito, que durou seis anos (1864-1870), o
Brasil, a Argentina e a Uruguai se uniram e destruíram uma das mais prósperas
economias da América do Sul. O nacionalismo paraguaio, sustentado na
viabilidade da sua ordem econômica, não beneficiava as transações imperialistas
que sustentavam as grandes nações e os grandes grupos econômicos. Por isso, foi
destruído, conforme a interpretação de alguns. Para outros, a Guerra do
Paraguai foi a demonstração do heroísmo e da bravura dos brasileiros, a
consagração de heróis como Caxias e Tamandaré, banindo a tirania no país
vizinho.
Como
não cabe aos brasileiros decidir se o governo dos países vizinhos são
ditatoriais ou democráticos (isso é tarefa de cada país soberano, ou,
atualmente, dos Estados Unidos!, conforme determina a usura deles, quando se
trata de abocanhar o pão dos mais fracos), a Guerra do Paraguai foi também uma
página da nossa história cheia de mentiras e
malandragens.
A
novela de Guido Rodríguez Alcalá, Caballero,
(Porto Alegre, Tchê!; trad. de Sérgio Faraco) reforça e confirma esta
perspectiva. Embora se trate de uma obra de ficção, o autor sustenta a trama da
sua narrativa na pesquisa documental dos fatos históricos, o que confere ao
livro um sabor realista. A descrição das cenas de combate, conforme já se
disse, parecem descritas por quem acompanhou os horrores e angústias da guerra.
O autor se vale se um cronista imaginário que vai ao encontro do General
Caballero, em exílio na Argentina, para fazer a sua biografia. O cronista fala
apenas no prólogo do livro, datado de 1º de março de 1912; nos momentos
seguintes a narrativa é feita em primeira pessoa pelo próprio General. Através
deste artifício, temos, de um lado, a viva descrição das cenas por um
protagonista privilegiado e, por outro lado, as irônicas justificativas e
reflexões do herói-narrador, que retiram da narrativa a grandiosidade épica
para aproximá-la da novela picaresca.
É
talvez para acentuar esta face, de uma crônica de escárnio, que Guido Alcalá
dedica o livro “para o Lazarillo de Tormes, respeitosamente”. Como observa o
tradutor do livro, o contista gaúcho Sérgio Faraco, depois que as cantigas de
gesta dão lugar a voz do prosador das novelas de cavalaria, na Idade Média,
surge a novela picaresca, inaugurada, no Renascimento, pelo autor desconhecido
de El Lazarillo de Tormes. “Caballero, do paraguaio Guido Rodríguez
Alcalá, é uma novela de idêntica extração e faz da chamada (no Brasil) Guerra
do Paraguai aquilo que ela parece ter sido, uma ópera-bufa italiana que o
desvario do elenco transformou em tragédia grega.”
Nesta
novela trapalhona, ou nesta tragédia, aparece a imagem que os paraguaios fazem
de nós, brasileiros. Nossos soldados são vistos como covardes, incompetentes e
truculentos, ao decapitarem e seviciarem
as crianças e mulheres alistados no exército de Solano López. O Conde
D’Eu, genro do Imperado D. Pedro II, que alternou com Caxias o comando das
nossas forças, é mostrado como um homem perverso, cuja crueldade tenta esconder
a covardia. O próprio Duque, então Marquês, não mereceu nenhum respeito por
parte dos paraguaios. Os soldados de Solano López riam da pouca coragem e da
indecisão do nosso herói. Caxias, tratado desdenhosamente como o Velho, é
reconstituído no livro como um homem sem ação e excessivamente prudente, que
preferia esperar, em lugares seguros, que os encurralados soldados paraguaios
tivessem tempo de se afastar da força brasileira. É a isso que o General Bernardino
Caballero, protagonista da novela, atribui muito do sucesso dos paraguaios.
“Graças a Caxias”, diz ele, conseguimos sair a salvo. Para eles, Caxias não
queria briga com ninguém.
A
ótica dos paraguaios, sintetizada na novela de Guido Rodríguez Alcalá,
contraria o que aprendemos na escola a respeito dos heróis da nossa História.
Veja-se a passagem em que o comandante argentino queria marchar com as bem
armadas forças aliadas sobre os paraguaios:
“Mitre
mandou o Almirante Tamandaré avançar com a frota, bombardear e destruir a
Fortaleza de Humaitá, mas Tamandaré tinha medo e disse que não era possível
fazer aquilo. Mitre também mandou Porto Alegre Cruzar de uma vez o Rio Paraná
com seu exército de 12.000 homens, invadir Encarnación e seguir dali para
Assunción, mas Porto Alegre também tinha medo. Os dois medrosos se uniram
contra Mitre.”
Os
desentendimentos entre os aliados e o medo fizeram com que a guerra se
estendesse por seis anos. Com a superioridade dos seus exércitos e da sua
esquadra, brasileiros, argentinos e uruguaios prometeram acabar com o conflito
em três meses. Passados três anos, ainda evitavam se bater com os soldados
paraguaios, gradativamente dizimados tanto pelos bombardeios quanto pela fome e
pelas doenças. Quando apenas meninos de dez anos formavam os pelotões de
defesa, heróis como o Conde D’Eu mostraram sua garra: massacraram as crianças e
seviciaram as mulheres, suas mães, que os acompanhavam. Os relatórios militares
dão conta que, depois dos combates, não ficou vivo um homem com mais de dez
anos de idade.
O
material reunido por Guido Rodríguez Alcalá para a constituição da sua novela é
bastante rico e expressivo. O recurso de construção de um cronista destinado a
escrever a biografia do General Caballero, ou melhor, as suas memórias da
guerra, apresenta excelentes resultados, principalmente ao ceder o lugar de
narrador ao próprio protagonista. Mas, mesmo assim, Caballero não é um livro bem acabado, ou, pelo menos, nesta
primeira leitura que fiz, não me parece um livro que aproveita bem a riqueza da
história e o gancho narrativo. O turbilhão dos acontecimentos fala pelo
ficcionista. Talvez para não estender a novela, o autor deixou de dar mais
assas à sua fantasia. Assim, na terceira parte do livro, por exemplo, o leitor
tem a impressão de estar lendo, de fato, um relato de guerra. Se, por um lado,
isto mostra o realismo da reconstituição ficcional, por outro lado, o peso do
relato chega a parecer documental, criando um clima de monotonia. A falta de
pequenas tramas subsidiárias, urdidas para emprestar mais interesse e colorido
ao texto, fazem com que tenhamos a impressão de estar lendo um documento
historiográfico e não uma novela picaresca. Apesar de ser um livro que a gente
lê com interesse, fica a impressão de que falta mais trabalho criativo. Mais
engenho e arte ficcionais. Registre-se que Guido Rodríguez Alcalá, nascido em
Assunção em 1946, é essencialmente poeta, conforme demonstra a sua
bibliografia. Depois de estudar literatura, nos Estados Unidos, e Filosofia, na
Alemanha, dedicou-se ao ensaio e, por fim, produziu esta novela. Texto de estreia,
portanto.
Heróis e trapalhões da história. Artigo crítico sobre o
livro Caballero, de Guido Rodríguez Alcalá. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador,
05 jan. 98, p. 7.
* * *
Correspondências para
esta coluna:
R. Alberto Pondé,
147/103.
40.280-630, Salvador,
Bahia