Uma fábula
do bicho homem
Autor
de uma obra formada por quase uma dezena de títulos, Antônio Torres vem sendo
reconhecido, sobretudo, como o autor de Essa
terra, romance publicado em 1976 e reeditado sucessivas vezes. As traduções
do livro para o inglês, o francês, o alemão, o espanhol, o italiano etc.
serviram também para consolidar o prestígio deste baiano mais conhecido lá fora
do que na sua terra.
Torres
começou a vida como jornalista em Salvador, transferindo-se depois para São
Paulo, e finalmente, para o Rio. Na grande imprensa do Centro-Sul fez nome e
passou a trabalhar em publicidade, sendo atualmente diretor de uma agência.
A
Bahia continuou sendo para ele uma referência um tanto longínqua, embora forte,
constituindo o espaço e o cenário do seu mundo ficcional. Foi este espaço
interior e paisagístico, que tem como centro polar a antiga Junco, nos sertões
de Alagoinhas, que forneceu a seiva de Essa
terra. Foi este mesmo livro que consolidou o nome de Antônio Torres como
escritor.
Mas,
ao retornar, vinte anos depois, à ruidosa quietude da sua Macondo, Torres
escreveu um livro que não apenas dá continuidade à saga de Totonhim pelas
veredas do Junco. O cachorro e o lobo
é um livro que, pela madureza da escrita e pelo domínio da técnica romanesca,
passa a ser o grande referencial da obra do autor.
Durante
muito tempo, embora refinando a escrita e diversificando a temática, Antônio
Torres continuou sendo o autor de Essa
terra. Mesmo quando a crítica apontava nele um artesão do texto cada vez
mais seguro e cheio de inventos, o livro de 1976 projetava sombras sobre as
novas histórias. Caio Fernando Abreu escreveu na Veja que Torres vinha
conquistando um universo próprio inconfundível, com a garra de quem estava
disposto a ocupar um dos grandes lugares vazios deixados na literatura
brasileira por Clarice Lispector, Guimarães Rosa ou Osman Lins. Mas Essa terra persistia como afirmação e
desafio.
O cachorro e o lobo
chega com a força de uma obra essencial, coroando a plenitude do romancista e
propondo-se como referência obrigatória. Os fantasmas e criaturas do universo
romanesco de Antônio Torres não mais pertencem ao pequeno mundo da velha cidade
de Junco. Pertencem à cidade solar da criação, ao lugar do sonho e do desejo de
todo leitor.
Ou
melhor: a Junco que serve de paisagem ao romance O cachorro e o lobo não é mais uma cidadezinha plantada nos
caminhos do sertão baiano, nas estradas de poeira levantada pelas sandálias da
gente de outro Antônio, que erguia igrejas e torres, o Conselheiro.
A
Macondo de Antônio Torres e a Junco de García Márquez, capitais de países tão
diversos, são cidades um pouco parecidas. Cidades que flutuam na memória e na
sensibilidade de milhares de leitores. O romancista de Essa terra, de Balada da
infância perdida, escreveu uma Carta
ao Bispo, pegou Um taxi para Viena
d’Áustria e, finalmente, conseguiu
reunir frente a frente O cachorro e o
lobo.
Para
juntar espécies distantes, mas tão próximas, o autor precisou criar um habitat adequado. Um lugar de sonho
plantado sobre pálpebras abertas e olhos esbugalhados. Ele construiu uma cidade
de todos nós, situada naquele espaço tão grande e desconhecido para o perplexo
viajante, que Drummond cunhou o topônimo Oropa-França-Bahia,
perdido nos confins do horizonte e da razão.
Com
o progresso do Centro-Sul do país e o desequilíbrio crescente entre aquela
região e o Nordeste, uma nova humanidade de retirantes — não mais os
retirantes da seca, mostrados pelo romance regional — habita as páginas da
ficção torreana. São os migrantes de
um outro Brasil, do Brasil perdido no tempo e nas roças abandonadas. Com a
ilusão criada pelas luzes de São Paulo, o homem que plantava e colhia a vida
nesse chão, nessa terra, foi plantar sonhos e desilusões nas construções de
concreto da Grande Cidade.
É
este homem, este retirante de si, que Antônio Torres vai buscar para constituir
a população da sua cidade de papel. O velho lobo espalha suas crias pelo mondo.
Mas, em vez de lobos, capazes de habitar as tocas do mato e liderar a matilha,
nascem cachorros desgarrados, perambulando pelas ruas da cidade.
Uns
são atropelados pelas máquinas. Outros desaparecem. Um ou outro cão solitário
consegue se fazer ouvir, uivando para a lua, na esperança de algum dia reunir a
matilha, como faziam os ancestrais.
Livro
linear, que conta uma história palpável e de fácil assimilação, O cachorro e o lobo é também um livro
emblemático, alegórico, onde leituras paralelas conferem uma nova dimensão à
linearidade da fábula.
Farrapos
de memória, cerzidos com fios dourados de ficção, ganham consistência ao serem
aplicados à entretela do romance. Uma resistente costura de retalhos e tacos multiformes constitui o
bordado, ou o novo tecido, feito de materiais de natureza diversa para formar a
textura una e bem urdida de uma bela colcha de retalhos.
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Uma
fábula do bicho homem. Artigo crítico sobre o livro O cachorro e o lobo, de Antonio Torres. São Paulo, Record, 1977,
224 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 30 jun. 97, p. 7.