Fábrica de homens
A cidade e os
cachorros, romance de Mario Vargas Llosa que causou polêmica
e tumulto no Peru, em 1962, chega agora ao Brasil em edição da Companhia das
Letras. O autor se tornou mais próximo do público brasileiro com a publicação
de A guerra do fim do mundo, de 1981,
retomando a saga de Antonio Conselheiro.
Foi ainda nos anos sessenta que Vargas Llosa passou
a desfrutar de grande prestígio internacional, como um dos escritores
latino-americanos mais lidos na Europa e no mundo, com a tradução de A cidade e os cachorros para quinze
línguas e dezenas de países.
O último livro, Peixe
na água, é um relato memorialístico centrado na sua experiência política,
especialmente em 1990 quando foi candidato à presidência do Peru. Observe-se
que o gênero memória não é um dado novo na obra de Vargas Llosa. O livro de estreia
e seu grande sucesso editorial, A cidade
e os cachorros, já continha um forte entrelaçamento de memória e ficção.
Foi precisamente a notoriedade de fatos reais
sustentando a trama do romance que provocou a onda de indignação e intolerância
responsável não mais pela execração do livro -- conforme pretendiam os oficiais
dirigentes do Colégio Militar Leoncio Prado, cenário do romance, -- e sim pela
sua estrondosa repercussão.
Uma cena típica da inquisição, chamou a atenção do
mundo para o texto de um obscuro escritor. Mil e quinhentos exemplares deste
livro aguardavam o “ato de fé”. No centro do pátio do Colégio Militar, o mesmo
pátio em que os personagens da história viveram seu aprendizado de medo,
prepotência e covardia, uma fogueira foi acesa. Dando pompa ao ritual, centenas
de alunos, com fardas engomadas e botas reluzentes, esperavam em formação.
Aos monitores, estudantes modelos, cabiam o dever e
o direito de executar a sentença: alimentar o fogo com milhares de páginas
impressas denunciando, sob o manto da ficção, o autoritarismo e a hipocrisia
que eram iluminados e vistos, anos depois, pelo clarão da fogueira da
realidade.
Longe de negar a denúncia do ex-cadete Mario Vargas
Llosa, a cerimônia militar deu prova concreta da continuidade dos métodos
discutidos pelo autor. E mais: atraiu os holofotes da mídia, quase sempre
desatentos ao mundo da literatura, para o nome de um estreante.
Os personagens adolescentes de A cidade e os cachorros sabiam que foram estudar no Colégio Militar
para “se tornarem homens”, como diziam seus pais. Mas não sabiam que a fábrica
de homens, com a brutalidade ditada pela sanha dos mais velhos sobre os
calouros, humilhava e corrompia a matéria prima. Meninos mal saídos das saias
de suas mães eram expostos à lei do mais forte. À lei dos bichos, dos homens,
das nações. À lei do mundo.
Mas o que a narrativa de Vargas Llosa enfoca com
nitidez é comprometimento da instituição com esta lei. E ainda: mais importante
do que a verdade, do que a ordem e a retidão, presentes nos regulamentos
militares, são as aparências.
Um tenente caxias e bem intencionado aprendeu tarde
esta lição. O Exército era uma forte razão de viver. Seus regulamentos eram
leis supremas. Mas ele teve que aprender: acima de tudo estavam as
conveniências, as aparências, as tramas enganosas. E foi obrigado a exigir dos
seus cadetes que esquecessem tudo aquilo que lhes tinha ensinado.
A prova final necessária para formar os homens do
amanhã exigia que outras lições fossem aprendidas. Lições que ele próprio não
sabia. Lições de pusilanimidade, de ressentimento, de mentiras.
Nestes mundos de ficção e realidade, o parecer é
mais importante do que o ser. Ser correto é apenas um detalhe, uma questão
pessoal. O importante é parecer correto.
Na sua arquitetura ficcional, o Colégio Militar
Leoncio Prado é uma metonímia do mundo dos homens. Foi isto que Vargas Llosa
construiu: uma história evidente, onde a escola é uma pequena amostra da
sociedade.
É isto que todos sabemos. Para conhecer coisas
grandes, como o país, o estado, basta conhecer nossas universidades e escolas
públicas. Elas refletem aquilo que somos e projeta aquilo que seremos.
Quando as escolas aceitam o cultivo da negligência e
do faz de conta, a sociedade que se cultiva nesta fábrica do amanhã será uma
sociedade baseada na negligência e no faz de conta. Uma sociedade falida.
Estas lições, Mario Vargas Llhosa aprendeu pelas
vias da sensibilidade. Tentou ensiná-las a seu povo, em forma de histórias
contadas para acordar os adultos, em forma de ficção. Em vez de escutá-lo, os
que tinham o poder preferiram queimar seus livros para que não fossem lidos nem
dissessem aquilo que eles mesmos já sabiam.
Assim acontece com aqueles que ainda acreditam no
homem. Acontece com o menino incorrompido que tem a coragem de dizer bem alto:
— O rei está nu.
Mas, mesmo que nenhum de nós tenha coragem de dizer,
a veste não se inventa. Para não parecermos hostis preferimos dizer que ele
está vestido.
Mas, mesmo assim, o rei está nu. O rei está nu.
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Fábrica de homens. Artigo crítico sobre o livro A cidade e os cachorros, de Mario Vargas
Llosa. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 14 jul. 97, p. 7.