O espelho
da reflexão
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No livro
Através do espelho
(Cia. das Letras,
1998),
Jostein Gaarder,
autor de O mundo de Sofia,
transforma o tema da
morte
numa história
cheia de
encantamento.
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Uma menina, deitada no leito de morte,
faz uma longa e surpreendente viagem através da vida. Cecília voltou do
hospital para a sua casa, mas não pode sair da cama. Está cada vez mais fraca e
dorme a maior parte do tempo. Ela pensa em correr lá fora. Ganhar um par de
esquis, no Natal, para andar pela neve. Assim que ficar boa.
Ela não sabe que está de câncer e que
vai morrer. Às vezes, sente-se nervosa, briga com a mãe que sempre lhe trata
com carinho e paciência. Todos da casa são muito atenciosos com Cecília, fazem
questão de ficar ao seu lado. Mas, às vezes, ela quer ficar sozinha, porque, na
sua solidão, viu um menino muito estranho flutuando no peitoril da janela.
Intrigada, veio a saber que se tratava
de um anjo, chamado Ariel. Mas Cecília não acreditou. Ariel se esforçava por
convencê-la de que era um anjo, descido do céu. Ele sabia muitas coisas sobre
as pessoas, coisas acontecidas há muito tempo com Cecília e com a sua família.
Ariel conhecia até as aventuras vividas na última viagem de férias.
Ele podia flutuar, atravessar as paredes
e avisar a Cecília que seu pai, daí a pouco, entraria no quarto. Quando a avó,
o irmãozinho Lars, ou qualquer outra pessoa chegava, Ariel desaparecia de
repente. Por isso Cecília foi admitindo a ideia de que ele era um anjo.
Falava muitas coisas sobre o céu e
queria que Cecília lhe explicasse os sentimentos das mulheres, dos homens e das
crianças. A menina gostava muito da companhia do novo amiguinho; e quando sua
mãe ficava sentada ao lado da cama, às vezes, fingia dormir para que ela saísse
e Ariel pudesse aparecer.
Foi graças a ele que Cecília pôde
experimentar o par de esquis que, depois de muita insistência, ganhou de
presente. À noite, quando todos dormiam e a lua cheia iluminava o monte coberto
de neve, em frente à janela do quarto,
Ariel levou Cecília para um passeio. Pegou roupas quentes no armário,
calçou-lhe os esquis e carregou a menina, flutuando pela janela.
Finalmente, ela pôde esquiar, correr
pelos montes, descer até o rio congelado e, antes que amanhecesse, voltar para
a sua cama. Encontrar forças para fazer tudo isto, quando estava doente e muito
cansada, parecia um sonho, mas Cecília conversava com o anjo Ariel e, por isso,
sabia que estava acordada.
Estas aventuras, vividas às escondidas,
como uma fantasia proibida, eram as melhores coisas; e as mais reais vividas
por ela, durante a doença. Cecília ia ficando cada vez mais fraca; passava a
maior parte do tempo dormindo. Mas, quando acordava e via o pai ou a mãe ao
lado da cama, sabia que quando fechava os olhos e fingia que não esta acordada,
eles também iam dormir, no quarto ao lado. Era nestas horas que Ariel chegava e
conversava com ela.
Cecília guardava um caderno de notas ao
lado da cama, sempre à mão; uma espécie de diário, onde anotava um monte de
coisas. Depois que conheceu Ariel, as conversas e as coisas que ele contava
eram transformadas em anotações. Numa hora em que se sentia mais forte e a mãe
saiu do quarto, ela pegou o caderno e anotou o seguinte:
“A cada segundo a natureza sacode a
manga do paletó e caem algumas crianças novinhas em folha. Abracadabra! E a
cada segundo muitas pessoas desaparecem também. Quando chega a hora, chega a
hora, e Cecília tem que ir embora...”
E depois desta frase de sentido estranho
ela escreveu ainda:
“Não é a criança que vem ao mundo, mas o
mundo que vem para a criança. Nascer é receber de presente o mundo inteiro.”
Nas suas leituras e, depois, nas
conversas com Ariel, Cecília descobriu que nós enxergamos o mundo como num
espelho. Quando conseguimos polir este espelho e ver também o que há através
dele, aparece um novo mundo, aparecem as coisas do outro lado. Ela diz que se
pudéssemos polir ainda mais o espelho, de forma a alcançar a transparência
absoluta, veríamos muito mais coisas. “Porém, não enxergaríamos mais a nós
mesmos”.
A vida e a morte, como espaços opostos e
indivisíveis, constituem o tema deste livro de Jostein Gaarder, escritor
norueguês que estudou filosofia, teologia e literatura. Durante dez anos, ele
foi professor em colégios da sua cidade, até que resolveu escrever um livro
fazendo uma síntese da história da filosofia para seus jovens alunos. O sucesso
foi imediato, com o livro traduzido para quase meia centena de países e
línguas. Nasceu então o escritor de O
mundo de Sofia, O dia do Curinga, Através do espelho e alguns outros.
A característica básica da obra de
Gaarder, mantida também neste livro, é a de constituir textos escritos para
adolescentes que alcançam enorme repercussão junto ao público adulto. A
reflexão filosófica e existencial bem fundada, mas expressa numa linguagem
coloquial, simples e sobretudo atraente, conquista leitores entre os mais
cultos e os menos informados.
Numa síntese, diríamos que Jostein
Gaarder é exatamente o inverso dos autores de livros místicos, tipo Paulo
Coelho, ou de auto ajuda, tipo Laís Ribeiro e companhia ilimitada. Enquanto
estes dizem o óbvio travestido em ensinamentos profundos, Gaarder procura
sondar os espaços da inteligência e da sensibilidade fingindo contar histórias
para crianças.
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O espelho da reflexão. Artigo crítico sobre o livro Através do espelho de Jostein Gaarder.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 6 jul. 98, p. 7.