Elogio da mentira
————————————————
Imagine um
romance policial
reunindo a
agilidade
do gênero à
qualidade
dos bons escritores.
Patrícia Melo
imaginou
primeiro
e publicou
Elogio da mentira.
————————————————
O
título do livro tanto se presta à promoção comercial de um produto destinado ao
grande público, quanto a provocar a sensibilidade do leitor mais exigente. Daí
ser tomado de empréstimo para intitular o artigo. Elogio da mentira, além de sintetizar o motivo central do romance,
assume um deliberado parentesco com a obra clássica de Erasmo, Elogio da loucura.
A
partir daí, fica-se atento para os jogos da autora, para a intertextualidade,
ou o constante diálogo com obras de outros escritores, ora tomando emprestado
uma ideia, ora uma expressão.
Patrícia
Melo estreou em 1994, pela Cia. das Letras, com Acqua toffana, para lançar no ano seguinte O matador, já traduzido e publicado em oito países.
Mas
não pense o leitor menos informado que ela é uma espécie de Paulo Coelho. A
semelhança entre ambos fica apenas na capacidade de atingir o grande público
brasileiro e de fazer boas vendas no exterior. Esta escritora fascinante
consegue uma coisa rara: aliar a qualidade da narrativa às tramas de boa
aceitação por um público mais amplo.
Sua
principal arma é o texto conciso, objetivo e poderoso. É verdade que a secura
informativa de um roteiro, que caracteriza sua narrativa, pouco cede espaço à
poesia cotidiana que pode ser desentranhada das palavras. Ela conta suas
histórias com determinação, com tal gana de contar que não deixa espaço para
jogar com o indizível da linguagem.
Mas
não podemos exigir tanto de uma autora jovem. Um García Márquez é capaz de
transitar entre a objetividade da narrativa, com denso poder de informação, e o
mergulho pelas camadas inexploradas do discurso. Patrícia Mello parece ter tudo
para um dia chegar perto, se não ceder ao apelo da acomodação.
Elogio da mentira
é concebido como um romance policial. Sua trama, cheia de peripécias que deixam
o leitor ansioso, segue o figurino dos clássicos do gênero. Cada página do
livro reserva uma surpresa e promete novas situações ainda mais inesperadas.
Desafiando a inteligência do leitor, a história segue o seu curso sem cair na
previsibilidade. A tensão vai crescendo a cada capítulo até explodir, brotar a
derradeira surpresa.
O
começo de tudo é um caso de amor, onde o desejo conduz à paixão e aproxima o
protagonista de uma mulher que planeja matar o marido com uma serpente
venenosa. José Guber, um obscuro autor de livros feitos por encomenda para
coleções populares, se vê enredado no perigoso projeto de Fúlvia.
Até
conhecer a atraente bióloga e criadora de animais peçonhentos, as preocupações
de Guber se limitavam a resumir o roteiro do livro a ser entregue até o fim do
mês, para fazer jus ao salário na editora.
“Quem
quer saber de culpa e arrependimento? Queremos ação. Sangue. Violência.” Curto
e grosso, o editor joga no lixo o roteiro projetado e exige uma outra história:
“Um romance policial precisa de um cadáver, e quanto mais morto ele estiver,
melhor. E não pode ser um cadáver qualquer. Como vamos despertar o sentimento
de vingança nos leitores matando uma velha sarnenta e indesejável? Se uma velha
dessas morre, o povo aplaude.”
De
escritor medíocre de romances policiais, José Guber passa a cúmplice de
homicídio. Fúlvia foi atraída pelo seu engenho de inventar crimes desvendáveis
e, na cama, celebra o prazer dos amantes relembrando os assassinatos narrados
por Guber. Mas ele confessa que os melhores crimes foram copiados de autores
famosos. Copiava, imitava, copiava, sem culpa, Edgard Alan Poe ou outro grande
escritor qualquer. Ora, estava até prestando um serviço aos leitores destes
livretos vendidos em bancas de revista. Assim, eles leriam trechos de grandes
obras. De que outra forma teriam acesso a Dostoievski, Zola e outros mais?
Mas
nem sempre Guber conseguia copiar de forma convincente, sua colcha de retalhos.
Copiando um pedaço daqui e outro dali, às vezes, não dava em nada. Despedido,
terminou substituindo um autor de livros de autoajuda, tipo Laís Ribeiro e
outras bugigangas. Chegou a pensar em trabalhar numa igreja da mídia, mas nem
sempre se encontra uma boa vaga de bispo disponível. Como sempre há um trouxa
interessado em cultivar sua inteligência emocional, ou em desenvolver suas
excelentes potencialidades, Guber arregaçou as mangas e estourou na praça, sob
o pseudônimo de João Aroeira, com livros como Dê uma mão a você mesmo, Dicionário simbiótico do sucesso profissional
e, depois, Dicionário simbiótico da
saúde.
Não
conseguiu uma vaga de bispo, mas ganhou muito dinheiro com seus livros e com o
hipotético Centro Universalis, até chegar a um projeto mais ambicioso: ensinar
a humanidade a falar com Deus. Em Conversando
com o criador, Guber ganhou poderes transcendentais de magos tão
respeitáveis como Paulo Coelho.
Mas
enquanto tudo isto acontece e, por conta e risco da sua imaginação, o leitor
liga as peripécias de Guber a fatos e pessoas reais, as tramas policialescas e
amorosas do livro vão se enredando de tal forma que qualquer pista que se dê
aqui ficaria perdida em meio aos acontecimentos.
Cabe
ao leitor conferir. Elogio da mentira,
de Patrícia Melo, é um livro que se lê com gula, tais as seduções que ela sabe
armar.
_____________________
Elogio da mentira. Artigo crítico sobre o livro Elogio da mentira de Patrícia Melo.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 22 jun. 98, p. 7.