Documento
do sequestro
O
livro de Alberto Berquó O sequestro dia a
dia, que acaba de ser lançado pela Nova Fronteira, aproveita o momento de
interesse pela história dos acontecimentos políticos que levaram ao sequestro
do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, no dia 4 de setembro de
1969, por um grupo de militantes da resistência ao regime ditatorial instaurado
em 64, pela direita.
Os
civis que tramaram o golpe contra o governo eleito hoje constituem a bem
sucedida falange de neoliberais responsáveis pela condução da política
governamental dos dois fernandos. São os mesmos próceres que agora estão
empenhados em golpes mais “democráticos”, como mudanças de regras para os jogos
cujos times já estão em meio de campo; como, por exemplo, a aprovação da
reeleição para os cargos de presidente, governadores e prefeitos.
Esta
velha história (não a dos golpes, mas a do sequestro), desconhecida pelos
milhares de brasileiros que têm menos de trinta anos, voltou à mídia através do
filme de Bruno Barreto baseado no livro O
que é isso companheiro, de Fernando Gabeira.
O
documento ou a reportagem de Alberto Berquó, jornalista que se tornou escritor
a partir do exílio na Suécia, tem o mérito de rever os acontecimentos num tempo
em que as paixões já se apagaram, permitindo assim uma investigação mais
isenta.
No
brevíssimo prefácio do livro, de apenas doze linhas, Sérgio Cabral é enfático:
“Asseguro que não há qualquer documento impresso em torno do tema que seja ao
mesmo tempo tão bem escrito e tão bem informado. Trata-se de leitura
obrigatória, por muitas razões. A principal é a seguinte: quem começa a ler é
também sequestrado pela narrativa leve e competente de Berquó – e só se liberta
da leitura na última linha.”
Quanto
à afirmativa de que se trata de documento bem informado, aceito o ponto de
vista de Sérgio Cabral, pois não disponho de dados para refutá-lo. Assegurar,
no entanto, que é um documento bem escrito a ponto de se sobrepor aos demais é
um evidente exagero.
O
texto, não obstante ser breve e tratar de um tema candente, é monótono. Se ele
sequestra o leitor é porque põe impõe uma monotonia, um compasso de espera tão
entediante quanto aquele a que se submeteram os protagonistas enquanto
esperavam o fim do prazo dado à junta militar para atender às exigências dos
sequestradores: libertar no exterior quinze brasileiros de fações e partidos
políticos diversos que sofriam na prisão torturas e outras humilhações.
O
autor do livro abandona a técnica da reportagem e lança mão de alguns recursos
da narrativa literária, como a multiplicidade de acontecimentos, postos a
serviço da criação de um painel representativo do momento da ação. Desta forma,
ele abre o livro dirigindo o foco narrativo para jogos de futebol, corridas de
cavalo, recepções da alta roda social, chás de cozinha e outras frivolidades
registradas pela colunas sociais, como os modelitos usados na festa de
aniversário da elegante senhora X, sempre acompanhada pelo seu charmoso marido,
que inaugurava uma elegantérrima gravata.
Élder
Jofre quebrou a mão na cabeça do mexicano Rudy Corona. Beti e Lurdes Faria
deram jantar para o paulista José Scarano. Carlos Machado embarca para os Estados
Unidos. Haroldo de Andrade estreia na TV Tupi. Maísa continua sua temporada na
Sucata. Ugo Orlandi recebe o segundo transplante cardíaco, pela equipe do
professor Zerbini.
Das
cento e poucas páginas do livro quase cinquenta são
ocupadas por tais contrapontos
narrativos, tanto no início quanto no meio do texto. O recurso
é válido e a intenção
é boa, mas a sua aplicação não é
convincente. Como exercício de criação
literária,
mereceria boa nota, desde que o texto fosse reescrito ou copidescado, para ocultar o excesso de fascínio exercido sobre o
autor pelo uso do recurso. Alberto Berquó termina dando uma ênfase demasiada a
esta narrativa contrapontística, sombreando a narrativa nuclear do livro.
Juntar
reportagem e recursos da literatura é um expediente que pode produzir textos
bem escritos, o que não quer dizer que toda junção assegure um resultado satisfatório.
Se o bom repórter não é igualmente um bom artesão literário a junção pode ser
insólita.
Neste
caso, a técnica narrativa, ou o artesanato verbal de Alberto Berquó não esteve
à altura do material colhido na sua reportagem. As soluções literárias em vez
de acrescentarem mais vivacidade e dinâmica à sua narrativa jornalística
projetaram uma grande sombra no turbilhão os fatos. Mas estes, felizmente,
resistiram e o livro pode ser livro, apesar da literatice.
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Documento
do sequestro. Artigo crítico sobre o livro O
sequestro dia a dia, de Alberto Berquó. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 9 jun. 97, p. 7.