Do trágico
ao irônico
————————————————
Depois
de bem sucedidas
incursões
pelo vasto território
do
romance,
Guido
Guerra volta ao conto,
escrevendo
páginas
da
melhor qualidade em
Vila Nova da Rainha Doida.
————————————————
Guido Guerra saltou da
crônica diária do jornal para as páginas do livro quando ainda não conhecia o
fluxo das traiçoeiras correntezas do rio, cortado por pedras, quedas d’água e
cachoeiras — o curso da escrita.
Os contos de Dura
realidade, publicados em 1965 pela Editora Progresso, marcaram a estreia de
um escritor que em quase nada deixava entrever o ficcionista da maturidade. Na casa do sem jeito, livro de crônicas
que veio em seguida, traziam para o livro a irreverente figura do Papagaio
Devasso, uma espécie de Boca do Inferno dos inquietos anos sessenta.
Mas não foi assim que ele
permaneceu. O tempo poliu a pedra bruta, a brita. As águas de muitos rios
lavaram a língua, o trapo, e surgiu, reluzente, a luz do trabalho e da
seriedade. Surgiu o escritor Guido Guerra.
Se nos primeiros livros, o jornalista tentava dar ares de
ficção a uma reportagem única e recorrente — os fatos do seu mundo interior —,
nos últimos livros, o jornalista, o artesão da escrita se faz artista, se faz
escritor.
Quando os personagens do Guido Guerra dos anos setenta
falavam, era uma voz uníssona que dizia o seu sentimento. Somente anos depois
veio a despersonalização, o dialogismo, a presença de vários sujeitos,
verossímeis, verdadeiros, independentes do seu criador.
Anos depois, não mais uma
voz uníssona dizia o seu sentimento, o pessoal e o intransferível; mas várias
vozes de vários personagens diziam o sentimento do mundo, o impessoal, o
transferível a todos nós, a toda voz. Várias vozes diziam que surgia um
escritor.
Somente anos depois ele sairia da casa do sem jeito para o céu
azul do sol poente, onde Dr. Salu
anunciava as santas aparições da luz, da terra, do ficcionista Guido Guerra.
Não mais o Papagaio Devasso, não mais o Língua de Trapo, mas o escritor, o
criador de mundos e de criaturas.
Aquele que aprendeu, através do diálogo bem tecido e da
voz do outro, a dar voz a si mesmo.
* * *
Nos últimos vinte anos, Guido Guerra construiu seu espaço
no quadro da ficção e, especialmente, do romance brasileiro com livros como O último salão grená, Lili Passeata, Quatro
estrelas no pijama e Ela se chama Joana Felicidade, publicados pela
Civilização Brasileira, pelo Clube do Livro e depois pela Record.
Jornalista por formação, começou pela
narrativa curta, pela história feita para ser lida de uma só fôlego. História
que reunia a agilidade da reportagem e o humor circunstancial da crônica.
Depois, ele descobriu que precisava do tempo e do espaço romanescos para
conferir densidade aos seus personagens, muitos deles nascidos do texto
perecível de jornal.
Chegando ao romance, Guerra apurou sua artilharia
narrativa e amadureceu como escritor. Vila
Nova da Rainha Doida, que acaba de chegar às livrarias e está sendo lançado
em Salvador, é o retorno do escritor ao campo de desafios da história curta.
Neste livro ele realiza alguns contos exemplares, capazes de permanecer na
mente do leitor engendrando outras palavras. Palavras ditas do interior de cada
um de nós quando tecemos o fio de ligação entre o destino dos seus personagens
e o nosso cotidiano de leitores.
Outros contos, no entanto, permeiam a crônica, com sua
despretensiosa espontaneidade, onde o anedótico se sobrepõe à astúcia
fabulativa. São histórias que não alcançaram o mesmo nível de linguagem e
fabulação que caracteriza o livro como um conjunto, como um todo formado por
cordilheiras ensolaradas e vales sombrios. Mas as boas histórias compensam
plenamente os momentos em que o cronista do cotidiano aligeirado insiste em
ocupar espaço nestas quase duzentas páginas de Vila Nova da Rainha Doida.
O mundo rural, as pequenas cidades do interior, tomadas
como metáforas confortáveis da sociedade global, constituem o território mais
luminoso da narrativa de Guido Guerra, o espaço onde ele realiza melhor o
trabalho ficcional. As histórias transcorridas neste mundo emblemático são as
mais fascinantes, a exemplo daquelas passadas em Mirante dos Aflitos, cidade do
Coronel Duarte e do seu fiel escudeiro Tibério Boa Morte.
Neste espaço denso e trágico o ficcionista pode alcançar
seus mais bem acabados relatos, transpondo para o domínio distante das ficções
do interior, a opressão e a injustiça que caracterizam a reluzente miséria do neoliberalismo.
Sem fazer apologia dos deserdados e sem macaquear o
engajamento dos anos sessenta, o texto deste escritor dispara certeiro e
objetivo, guardando nos cofres do faz de conta os tesouros da solidariedade e
da denúncia mais consequentes.
A força da tragédia banal
dos homens simples é, às vezes, arrefecida pela busca do humor. Em meio ao
desapontamento do narrador e do leitor diante das impassíveis engrenagens da
máquina do mundo, Guido Guerra recorre ao humor de conformação um tanto irônica
e cáustica, quebrando a tensão da narrativa. Mas os melhores momentos são
aqueles em que ele enfrenta o destino das suas criaturas de papel, deixando que
elas executem movimentos de desespero e resignação contra a rede da vida.
Deixando que elas encenem o gesto falido ou o ensaio mambembe deste drama, cujo
roteiro todos gostaríamos de reescrever. Mas este drama não se passa num palco
mas nas ruas do nosso tempo, onde o riso desconcertado toma o lugar que poderia
ser ocupado por um soco no vazio – ou pelo impassível fluir do trágico.
_____________________
Do
trágico ao irônico. Artigo crítico sobre o livro Vila nova da Rainha Doida de Guido Guerra. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador,
1º jun. 98, p. 7.