DE
ARTISTAS E AUTISTAS
A neurose fornece substância ao material poético,
eis uma verdade. Mas a neurose em si e esse material não são suficientes para
assegurar a existência da obra de arte. Fernando Pessoa percebe isso e
compreende como o Romantismo toma apenas uma parte dessa verdade,
negligenciando a mais importante: Não basta a alguém ter a substância do
material poético fornecida pela sua neurose; é preciso dar a esse material uma
forma comum ao arcabouço da realidade de todos os homens – social e
comunicável. Não é, portanto, a experiência vivida, em si, que faz o poeta, mas
o que ele faz dessa experiência.
O Romantismo, afirma Pessoa, admite princípios que
possibilitam a qualquer indivíduo conferir a si mesmo a coroa de artista:
"Tomar a ânsia de uma felicidade inatingível, a angústia dos sonhos
irrealizados, a inapetência ante a ação e a vida, como critério definidor do
gênio ou do talento, imediatamente facilita a todo indivíduo que sente aquela
ânsia, sofre daquela angústia, e é presa daquela inapetência, o convencimento
de que é uma individualidade interessante, que o Destino, fadando-a para
aqueles sofrimentos, e aquelas impossibilidades, implicitamente fadou para a
grandeza intelectual." (Obras em Prosa)
Lembra
o poeta que, de acordo com a teoria clássica,
é a capacidade de construção e de
coordenação, ou a disciplina interior, que
origina a produção estética, onde a razão
é capaz de ordenar e compreender as
explosões desordenadas da emoção vulcânica.
A poética romântica permite a aceitação
do equívoco segundo o qual alguém pode se presumir
artista, porque "as
qualidades fundamentais exigidas são um sentimento de
vácuo nos desejos, um
sofrimento sem causa, e uma falta de vontade para trabalhar –
características
que mais ou menos todos possuem, e que nos degenerados e nos doentes do
espírito assumem um relevo especial." E acrescenta ainda Pessoa:
"Não
é no estímulo que dá ao individualismo que o
perigo romântico consiste;
consiste, sim, no estímulo que dá a um falso
individualismo. O individualismo
não é necessariamente falso; quando muito é uma
teoria moral e política. Mas há
uma certa forma do individualismo – como há uma certa
forma do classicismo –
que é com certeza falsa. É a que permite que o primeiro
histérico ou o mais
reles dos neurastênicos se arrogue o direito de ser poeta pelas
razões que, de
per si, só lhe dão o direito de se considerar
histérico ou neurastênico."
Observe-se que Fernando Pessoa explicava a gênese da
sua criação poética heteronímica a partir do fato de ser ele histérico e
neurastênico, como foram histéricos também Shakespeare e Goethe. O histérico
tende à despersonalização, à identificação com personalidades outras, o que
possibilitaria a criação dramática dos personagens shakespearianos e goetheanos
e a criação, igualmente dramática, realizada através de discursos líricos, das
obras poéticas de heterônimos como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo
Reis. Todos os outros eus são, ao lado de Fernando Pessoa, ele-mesmo,
personagens de um grande drama que tem por epígrafe a máxima: "Fingir é
conhecer-se", onde a máscara é a face verdadeira.
O trabalho de construção poética seria sempre
precedido por um trabalho de auto-interpretação, de análise dos conteúdos
formados a partir dos deslocamentos impostos pela individualidade. Deste modo,
a emoção puramente pessoal do artista seria submetida à ordenação impessoal e
intelectual para se transformar em experiência comunicável. Os sentimentos
particulares não formam por si mesmos matéria poética, mas podem vir a formar,
caso, sem perder a natureza particular, consigam adquirir expressão universal.
A experiência individual de um homem diz respeito apenas a ele e a outros que,
como ele, tenham vivido uma situação semelhante; mas essa mesma experiência
transformada em material poético, sem perder a sua forma individual, encontra
ressonância na vivência de todos os homens. Isso porque a prática poética, ao
tempo em que interpreta a sua própria formação, reflete a experiência de quem
sobre ela se debruça.
O mesmo Pessoa que anuncia a arte enquanto notação
de uma impressão em desacordo com a norma social, propõe ir além do mito
individual do neurótico, em busca de um compromisso maior: "O artista não
exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas
que são comuns aos outros homens. Falando paradoxalmente, exprime apenas
aquelas suas emoções que são dos outros. Com as emoções que lhe são próprias a
humanidade não tem nada. Se um erro da minha visão me faz ver azul a cor das
folhas, que interesse há em comunicar isso aos outros? Para que eles vejam azul
a cor das folhas? Não é possível, porque é falso." E acrescenta a estas
colocações que o princípio central da arte é a generalização, a comunhão entre
o olhar do artista e o alcance da vista dos homens.
Se a gênese do gênio lírico é a histeria, este
embrião só se desenvolve quando depositado na terra comum. As potencialidades
só se transformam em ato quando o grito da fera acuada é substituído pela ação
eficaz. Em outras palavras: quando o mito individual do neurótico (já referido
por Lévi-Strauss e retomado por Lacan) encontra no seu ritual pontos de
identificação com o mito coletivo, ganha a eficácia simbólica necessária ao seu
poder de transformação da realidade.
Compartilhando, de um lado, as descobertas de Freud a respeito da natureza estrutural dos
fatos psíquicos, que seguem processos similares em sujeitos diversos, e, do
outro lado, avant la letre, as preocupações paradigmáticas da
antropologia estrutural, Pessoa não se deixa dominar pelo sentimento de
originalidade do gênio solitário: "Tudo que se passa numa mente humana de
algum modo análogo já se passou em toda outra mente humana. O que compete,
pois, ao artista que quer exprimir determinado sentimento, por exemplo, é extrair
desse sentimento aquilo que ele tenha de comum com os sentimentos análogos dos
outros homens, e não o que tenha de pessoal, de particular". O artista
pessoano não é o desvairado cantor selvagem, mas aquele que tem fôlego
suficiente para mergulhar pelas regiões primitivas da alma, tendo assegurado a
integridade do caminho de volta. A descida aos infernos não significa para o
artista um pacto com satanás, mas a descoberta de fontes de energia retiradas
da tensão entre forças inconciliáveis.
Se o artista encontra no material produzido pela
neurose a fonte profunda da sua criação, é porque ele consegue estruturar o
processo criador através dos mecanismos de superação da fonte original. O
caminho em busca do outro, enquanto força coletiva, cultural, portanto,
consiste no acesso às articulações do real pertencentes ao tesouro comum a
todos os indivíduos. A inserção do discurso da arte no sistema conceitual do
discurso da cultura representa a superação das dificuldades semióticas do
indivíduo, o que equivale a dizer: a superação dos mecanismos estruturais do
discurso neurótico por outros mecanismos de livre trânsito entre os mais comuns
dos mortais.
"Acima de tudo, a arte é um fenômeno social. No
homem há duas qualidades diretamente sociais, dizendo diretamente respeito à
sua vida social: o espírito gregário, que o faz sentir-se igual aos outros
homens, ou parecido com eles, e portanto, aproximar-se deles; e o espírito
individual ou separativo, que o faz afastar-se deles, colocar-se em oposição a
eles, ser seu concorrente, seu inimigo, ou seu meio inimigo. Qualquer indivíduo
é ao mesmo tempo indivíduo e humano: difere de todos os outros e parece-se com
todos os outros. Uma vida social sã no indivíduo resulta do equilíbrio destes
dois sentimentos: uma fraternidade agressiva define o homem social e são."
Nos mesmos "Apontamentos para uma estética não
aristotélica", aqui citados, Pessoa caracteriza o isolamento e o domínio
como resultantes do espírito antigregário que se manifesta no seio da arte.
Como porém a arte é um fenômeno social, mesmo o espírito separativo, ou
antigregário, se manifesta de forma social, isto é, sob a forma de domínio:
"A arte, portanto, é antes de tudo, um esforço para dominar os
outros".
Pergunto, então: se aceito o ponto de vista
pessoano, não será necessário questionar a clássica doutrina da sublimação das
fantasias como vértice polar à atuação na cultura? Freud apresenta tanto a
brincadeira quanto a fantasia, e, consequentemente, a imaginação poética, como
formas sublimatórias da ação no mundo social. O adulto não pode substituir a
realidade pela encenação do desejo: dele se espera que não continue a brincar
ou a fantasiar, mas que atue no mundo real, diz Freud. A arte, em geral, e a
literatura, em particular, serão mesmo formas de fuga da ação, mecanismos de
compensação sublimatórios? Em outras palavras, o trabalho do artista é enganar
o desejo e manter intocadas as formas estabelecidas da realidade, como sugere a
concepção sublimatória do fenômeno artístico?
Se assim pensarmos, teremos que admitir a arte ou a
literatura como o sorriso da sociedade – uma simples forma de divertimento, e
não de conhecimento. Se esta visão autorizada por Freud, for verdadeira, então
Pessoa não será poeta, nem o que ele faz será arte. A arte continuará sendo uma
forma consolatória de deleite e o projeto pessoano uma inútil viagem pelo
espaço de transgressão.
Segundo a teoria do fundador da psicanálise, a arte
promove a conciliação entre o princípio de prazer, através do qual o sujeito
tem como fim único a satisfação dos seus desejos, e o princípio de realidade,
destinado a submeter os projetos individuais às exigências do mundo objetivo. A
neurose tem como propósito e como resultado arrancar o sujeito da vida real,
assim como o artista é visto como alguém que se afasta da realidade, por não
querer ou poder renunciar à satisfação pulsional que ela exige. Todavia, diz
Freud, “encontra o caminho de volta deste mundo de fantasia para a realidade,
fazendo uso de dons especiais que transformam suas fantasias em verdades de um
novo tipo, que são valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da
realidade." Assim, em vários momentos da sua obra, Freud fica
ambivalentemente dividido entre reconhecer o real da ficção, conforme a
expressão de Wendel Santos, ou proclamar a natureza enganosa da realidade
poética. A conceituação tradicional da realidade parece exigir do analista
vienense que repita o gesto fundador da República de Platão, expulsando o poeta
dos domínios de uma realidade exemplar. Do mesmo modo que o filósofo imputava
ao artista a condição de imitador de segunda ordem, o psicanalista descrevia as
verdades articuladas pelo poeta como reflexos preciosos da realidade, e não
como novas configurações do real. Estamos, portanto, diante da velha teoria do
reflexo que tantos danos tem causado à compreensão da natureza da arte.
Mantendo de pé o muro que demarca a fronteira entre
os dois mundos, o mundo da realidade e o mundo da arte, Freud descreve a
errante caminhada de Orfeu pela floresta do alheamento. Se a transformação
operada pelo poeta não é sensível e imediata como aquela de uma revolução e
suas guilhotinas, mas se instaura através da consciência dos homens,
conquistando regiões desconhecidas, temos a impressão de que mudou. De que o
poeta continua estéril e a cultura ostenta sua virgindade incólume. Só lhe
resta lamentar a impotência de transformar a cidade dos homens.
Embora reconheça a força da palavra, ou das
representações verbais, como suficiente para equiparar a realidade do
pensamento com a realidade externa, Freud, em alguns momentos da sua teoria
(quando fala da arte), rejeita o dom do verbo de se fazer carne, pedra ou lei,
e de habitar a morada dos animais simbólicos. Segundo este ponto de vista, o
poeta, apenas, finge; nega. Fingir não é conhecer. Negar não é afirmar.
"Assim, de certa maneira, ele na verdade se torna o herói, o rei, o
criador ou o favorito que desejava ser, sem seguir o longo caminho sinuoso de
efetuar alterações reais no mundo externo."
No entanto, contrariando o que Freud explica, o
poeta replica: “É hoje que sinto / Aquilo que fui./ Minha vida flui, / Feita do que minto.”
É evidente que o século vinte e a contribuição
trazida pelos poetas da modernidade alteram substancialmente as perspectivas.
Pessoa, síntese e sintoma do século que preparou, é um sólido argumento em
favor de uma outra concepção da arte.
Numa carta a Luís de Montalvor, o poeta anuncia o
condão: "Como nos tinham tirado as coisas onde púnhamos os nossos sonhos,
pusemo-nos a falar delas para as ficarmos tendo outra vez. E assim tornaram a
nós, em sua plena e esplêndida realidade". Sabendo que o real é uma
construção da linguagem, o poeta não desdenha do seu instrumento como forma de
atuação. Atento ao poder da sua arma, dispara: "Mas assim é toda a vida;
assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama
civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não
compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho
verdadeiro criam uma nova realidade. O objeto torna-se realmente outro, porque
o tornamos outro. Manufaturamos realidades. A matéria prima continua sendo a
mesma, mas a forma que a arte lhe deu, afasta-a efetivamente de continuar sendo
a mesma."
O sonho e a linguagem são erigidos à categoria de
matéria do real, não a partir de uma idealização romântica, mas como
melancólica constatação dos precários materiais que sustentam o edifício do
homem.
Não esqueçamos que Freud costumava buscar além dos
limites da ciência, na arte, na transgressão do poeta, o material da sua
descoberta: "Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da
mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à
ciência."
Se, por um lado, Freud reduz a arte a mera forma
consolatória dos desejos irrealizados, ou a um mecanismo de sublimação
destinado a substituir a intervenção do sujeito na realidade social, por outro
lado, ele destaca as possibilidades do discurso da arte interferir na direção
dos processos psíquicos responsáveis pela construção do real. Tal contradição,
verificada em textos de diversos momentos de redefinição da teoria freudiana e
ao longo de um mesmo texto, pode deixar de ser compreendida como contradição,
se estivermos diante de dois objetos distintos, isto é, se Freud estiver
falando, num momento, do objeto da psicanálise e, no outro, do objeto da arte.
Quando tentamos compreender o universo do autor da
obra de arte, nosso objeto é o sujeito; e estamos, portanto, no campo da
psicologia ou mesmo da psicanálise. Quando analisamos o texto em si, ou o
circuito constituído pelo texto e por tudo o mais que venha a gravitar em torno
dele – mesmo que aí se incluam o emissor e o receptor do discurso poético, a
cultura, portanto – o objeto é a arte.
O problema crítico das abordagens psicanalíticas da
obra literária é que, em lugar de analisar o texto, procuram um divã de
metáforas para deitar o autor. O desejo de ser analista se manifesta em quase
toda crítica de influência freudiana, ao contrário do que fez Freud quando, por
sugestão de Jung, tomou um texto ficcional como um dos seus primeiros objetos
de análise arqueológica do discurso escrito. Em "Delírios e sonhos na
Gradiva, de Jensen", o criador da psicanálise não esqueceu da natureza do
objeto analisado. Ainda bem, porque se sua análise tomasse o velho autor como
objeto, poderia provocar estranheza de quem hoje acredita que as obras
ficcionais assinadas com o nome de Wilhelm Jensen foram escritas pela filha do
suposto romancista e dramaturgo alemão (1837-1911).
A discussão sobre o papel da arte como sublimação ou
como forma de atuar sobre a realidade deve levar em conta que, para o sujeito
escrevente, a construção de um outro real mais satisfatório pode substituir a
ação sobre a realidade circundante, enquanto para o fruidor da obra e para a
cultura, o trabalho do texto pode representar uma intervenção sobre o espaço de
convenção chamado vida social. A contravenção do real operada pela arte, atua
sobre as formas estabelecidas, abrindo passagens onde havia interdição.
Se a arte é um fato social, um ato cultural, e não
um simples sintoma do sujeito, o autor é um mero instrumento executor da
transgressão imposta pelo rigor da convenção. Não sou eu quem descrevo, eu
sou a tela: anuncia o artista do século da despersonalização.
_________________________
De artistas e
autistas. Artigo teórico sobre a criação artística e os mecanismos psíquicos
estranhos ao trabalho de criação. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 05 out. 98, p. 7.