Cony, o retorno
da escrita
Carlos
Heitor Cony tornou-se conhecido e admirado como jornalista e escritor por uma
qualidade essencial a ambos os ofícios: o domínio do texto. Enxuto e flexível,
dúctil, tanto no dizer quanto no não dizer – o sugerir o que não pode ser dito
– o texto deste profissional da palavra assegurou a permanência do seu nome nas
letras brasileiras. Depois de mais de vinte anos sem publicar, voltou ao
cenário literário com o romance Quase
memória, que recebeu o ano passado o Prêmio Machado de Assis da Academia
Brasileira.
Este
ano, publicou, pela Companhia das Letras, e ocupou lugar de destaque na grande
imprensa com os livros Antes, o verão
e O piano e a orquestra. O silêncio
de duas décadas foi preenchido por obras que repõem o autor sob a mira da
crítica e propiciam aos novos leitores o conhecimento de um escritor que sabe
usar a palavra. Quase memória é
unanimemente considerado pelos leitores a obra máxima do autor nesta sua
retomada criadora. Não por acaso o título, indicando uma diretriz presente não
apenas neste livro mas também em O piano
e a orquestra, como se verá adiante.
Observe-se
que os anos de maturidade de um escritor impõem o retorno da memória, como se
esta quisesse triunfar sobre o invento. A imaginação não elabora apenas uma
realidade inventada, mas sobretudo a realidade perdida e transformada em
matéria viva pela memória.
Em
O piano e a orquestra, a alegoria
pirotécnica da angústia e da morte, disfarçada no eterno embate entre o Bem e o
Mal, constitui a trama urdida a partir do destino anunciado do protagonista.
Francisco de Assis Rodano, o herói das insólitas peripécias suburbanas, se
deixa apresentar como Lúcifer Encarnado, o rival do Outro, de quem não ousa
dizer o nome para não conspurcar a luciferina chama do seu desatino. O desafio
a Deus contido na inapelável sentença “Ou Tu ou Eu”, apesar de bombástico, não
atinge dimensões universais ou cósmicas, mas está circunscrito a um universo
limitado entre os trilhos suburbanos da Estrada de Ferro Central do Brasil.
O
Rival do Outro é um demiurgo paroquial que liga seus poderes à periferia
suburbana, desinteressando-se pelos mistérios do mundo ocorridos fora dos
trilhos conhecidos. Trata-se, portanto, de uma versão mambembe, com toques de
ópera bufa, das tensões entre o Bem e o Mal, destinada à explosão do riso como
revelação despistadora dos abismos e labirintos do ser.
É
precisamente esta característica do herói desvairado, Francisco de Assis
Rodano, cujos limites do mundo acabam nas cercanias de Rodeio, a pequena
localidade dos acontecimentos, que transforma a grandiosidade sugerida pelo
clássico embate de forças polares numa impossível comédia de equívocos.
Comédia, ou melhor: drama, protagonizado por criaturas possíveis, tangíveis demais
para o absurdo da alegoria encobridora.
A
presença do fantástico, transformando o livro numa folhetinesca história do non sense, nos leva a entrever uma
relação entre o absurdo mundo ficcional de Rodeio e o absurdo contido no destino
e nas circunstâncias reais e concretas do sujeito. Daí, talvez, a ponte sempre
aberta ao trânsito entre a fantasia deslavada e as reedificações da memória
persistente.
Há
trechos do livro em que o narrador, um jornalista separado da mulher, de vida
solitária e sem outros prazeres, além do trabalho, parece tomar emprestados
alguns fatos concretos acontecidos com um outro jornalista, o autor da obra.
Nestes momentos, a objetividade no relato de fatos políticos e nas reflexões
provocadas, retira o leitor do mundo desconhecido e imprevisível da ficção para
inseri-lo no mundo mais ou menos previsível e conhecido da rememoração. O
ritmo, a lógica interna do que é narrado transformam-se e conformam-se ao
acontecido.
São
fluxos superpostos de ficção e memória que tecem o fio da escrita em O piano e a orquestra. Aí, a orquestra
furiosa e implacável não é mais o mundo, com seus fatos e turbilhões de
sentimentos que fogem e se opõem ao controle do sujeito. O piano não é o
indivíduo perdido e desencontrado com a orquestra. Piano e orquestra constituem
sons distintos quando o piano em solo retira da partitura as linhas da memória,
enquanto o bloco dos outros instrumentos, a orquestra, harmoniza as notas da
ficção.
Apesar
de tudo, da escrita modelar de Carlos Heitor Cony, das engenhosas linhas que
estruturam o romance, faltam a ele um urdimento de trama, ou uma história
contada, capaz de atualizar a forma, tornando-a substância de emoção e de
reflexão por parte do leitor.
O
leitor que busca no livro uma história com princípio e fim sente falta desta
história visível. Como o livro é um palimpsesto, onde a estória lida esconde as
palavras de uma outra história ocultada por sob a tinta das palavras visíveis,
ao raspar a camada superficial para deixar entrever a ocultada, raspou-se
também o que é contado nesta camada. Assim o essencial da superfície aparece
truncado, incompleto.
Daí
o desapontamento do leitor que espera ver na completude de uma trama visível e
envolvente metonímias da trama subjacente, esta sim, que por ser demasiadamente
real e concreta não se ordena e revela, mas precisa aparecer velada por sob as
tintas do palimpsesto.
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Cony,
o retorno da escrita. Artigo crítico sobre o livro O piano e a orquestra, de Carlos Heitor Cony. Romance. São Paulo,
Companhia das Letras, 1996, 306 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 2 dez. 96, p. 7.