Camille Claudel
e
Rodin
Camille
Claudel é, talvez, a primeira mulher a ganhar notoriedade como escultora. Na
passagem do século XIX para o XX a escultura ainda era uma atividade reservada
aos homens. A simples presença de uma mulher deslocada no estreito contexto da
sua época já era motivo de escândalo e punição para a “infratora”. Mas o
escândalo não parou aí. Jovem, inteligente e bonita, Camille terminou se
envolvendo com o seu mestre, bem mas velho do que ela – Rodin.
Esta
paixão mútua foi bastante útil para o famoso escultor, que contou com a dedicação
integral de Camille. Ela muito contribuiu para a consagração do trabalho de
Rodin, enquanto o velho mestre se limitou à defesa da sua própria carreira,
abandonando a discípula, quando os seus encantos e a sua arte deixaram de ser
úteis à cômoda vida do artista em franca ascensão.
Não
esqueçamos que quanto Camille toma Rodin como mestre, ele ainda não havia
conquistado a consagração junto ao público. O seu trabalho atingia apenas o
círculo dos iniciados. A talentosa discípula teve portanto um papel importante
nesta fase da carreira do escultor, que termina por descartá-la quando as
conveniências assim o exigiram.
É
isso que podemos ler no livro Camille Claudel: Criação e Loucura,
de Liliana Liviano Wahba, uma analista junguiana que constrói uma espécie de
psicobiografia da escultora. Ela tenta compreender alguns aspectos da chamada
loucura de Camille Claudel, uma mulher que joga todas as cartas no seu amor por
Rodin e na sua dedicação pelo artista.
Casado,
Rodin não se sensibilizou diante da forte pressão social exercida sobre a sua
jovem amante, submetida a mais de um aborto, à discriminação social e à
condenação pela família. Quando ela sucumbe aos fantasmas do mundo interior,
alimentados pelo mundo social, as circunstâncias e os fatos concretos são
perversamente esquecidos. Todos são unânimes em apontar apenas a evidente paranoia
de Camille. Não interessava nem à família nem à ciência mental da época
entender a relação provocação-resposta contida no desatino da jovem artista.
Enclausurada
num hospício, Camille foi vítima da estrutura doentia da mãe, esta sim, a fonte
de todo desvario. O livro de Liliana Liviano Wahba não trata deste resvalamento
de conflitos, muito embora apresente dados bastante significativos para a
compreensão do caso Camille Claudel.
Sabemos
que a mãe insistiu em manter a filha prisioneira no hospício, mesmo quando ela
superou a crise e se mostrou capaz de reiniciar uma vida fora dos muros da
prisão psiquiátrica. As cartas de Camille, relatando a vida no hospital para
doentes mentais e a sua consciência de que as pessoas ali confinadas estavam
condenadas à morte, são suficientes tanto para sensibilizar qualquer pessoa
quanto para demonstrar a conveniência da sua reintegração ao convívio familiar
e ao trabalho.
Camille
foi, a rigor, vítima e “porta-voz” não apenas dos fantasmas que corroíam Rodin
mas do forte comprometimento psíquico da sua mãe. Apesar de amada pelo velho
pai, ela foi rejeitada e hostilizada desde o nascimento pela mãe que, ao
assumir o controle da família, sepultou definitivamente a filha.
De
nada valeram as cartas mostrando o tratamento dado aos doentes psiquiátricos.
Lúcida e consciente, Camille não encontra interlocução com os demais internos,
ao tempo em que sofre o desconforto típico de uma prisão. O objetivo da sua mãe
era sepultar para sempre a filha odiada.
Camille
vive a sua juventude e envelhece no hospício. Nem mesmo com a morte da algoz reconquista
o direito sobre si mesma. O sempre amado irmão, o escritor Paul Claudel, se
omite inteiramente e termina por herdar e assumir o lugar de carcereiro. Aos
que imaginam que a sensibilidade é um requisito indispensável ao artista, o
exemplo dado por Claudel mostra o quanto o mundo dos homens excluía as
mulheres.
Todos
estes fatos servem para assinalar a cumplicidade da psiquiatria da época para
com os carrascos da repressão e, ao mesmo tempo, como testemunho do preço pago
pelas mulheres que rompiam com as expectativas de uma sociedade que as excluía
enquanto seres dotados de razão e sentimento.
O
contexto mental fim do século XIX e início do XX negava à mulher qualquer
condição de sujeito. Não apenas o seu desejo era eliminado, como também a sua
inteligência era negada. Tal holocausto explica o discurso belicoso do
pensamento feminista dos nossos dias, quando o espírito armado tenta expurgar
os traumas e cerzir as feridas ainda abertas.
O
caso Camille Claudel nos remete ao de uma outra grande mulher, bem mais próxima
da nossa cultura, que viveu a mesma época e foi aniquilada pelas mesmas
estruturas: a poetisa portuguesa Florbela Espanca. Em ambas a sociedade
falocêntrica puniu o mesmo crime: a ânsia de viver e de ser feliz.
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Camille Claudel e Rodin. Artigo sobre o livro Camille Claudel: Criação e Loucura, de
Liliana Liviano Wahba. Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 1996,
182 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 30 set. 96, p. 7.