De best-sellerS
e besteiras
O
leitor tupiniquim com algum prurido intelectual (ou o intelectual baiano com
aquele “borbulhar do gênio”, conforme a expressão de gosto duvidoso do nosso
poeta maior), geralmente, se enche de brotoejas quando tem nas mãos um livro
comercialmente bem sucedido. Imagina que sucesso de público é sinônimo de baixa
qualidade de texto. Quando o autor da obra é alguém bem sucedido em outra
confraria, nem se fala.
Como
burrice é doença infectocontagiosa, às vezes sou generosamente acometido por
essas coceirinhas que tanto ocupam e divertem as tertúlias literárias de província.
Isso se deu, entre outros casos de reincidência, com o romance de Jô Soares O Xangô de Baker Street. Não li e não
gostei, como costumam fazer os sábios de sovacos ilustrados.
Acontece
que uma leitora desta coluna escreveu perguntando porque não comentei o livro.
Respondi: porque a Companhia das Letras às vezes não envia seus lançamentos de
sucesso. Meia verdade. Meia mentira, também. Se tivesse recebido não sei se
teria lido. A leitora não parou por aí, presenteou-me com um exemplar, dizendo
que gostaria de conhecer minha opinião.
A
contragosto, comecei a ler o calhamaço de trezentas e tantas páginas e, aos
poucos, fui me dando conta de que estava infectado pela tal coceirinha gostosa,
esta espécie de bicho do pé de intelectual. Algumas páginas de leitura foram
suficientes para curar o renitente preconceituoso.
O
autor de O Xangô de Baker Street,
entre outras coisas, também sabe escrever. E escreve melhor do que muito
escritor já reconhecido como tal. O livro desconstrói as narrativas de Conan
Doyle e, dentro da mais arguta e divertida operação intertextual, traz para o
Brasil do segundo império o famoso Sherlock Holmes. Já se disse que o sol dos
trópicos tem o dom de corromper as inteligências e os caracteres. É o que
acontece com o brilhante criminalista inglês.
Na sua temporada brasileira, as deduções do detetive não convencem ao
caro dr. Watson.
O
romance de Jô Soares se propõe uma leitura atenta e bem humorada da vida
intelectual e mundana do Rio de Janeiro na segunda metade da década de 1880.
Além de fazer bom humor ele consegue, em muitas páginas do livro, reconstituir
uma época, com poucos tropeços. Olavo Bilac, Coelho Neto, Aluísio Azevedo e
outros escritores dividem com artistas como Chiquinha Gonzaga, ou mesmo Sarah
Bernardt (em longa temporada brasileira), um lugar de ator figurante neste
romance de época.
As
vetustas barbas brancas do imperador D. Pedro II são enrubescidas com um
romance extraconjugal com uma jovem e bela viúva, a Baronesa de Avaré. Nem
mesmo personalidades como Nina Rodrigues, discutido pelas suas teorias sobre
raças e caracteres individuais herdados, escapam do pitoresco recrutamento. Um
certo dr. Nina, jovem baiano que mudou-se para o Rio de Janeiro enquanto
preparava seu doutoramento, fornece pistas ao detetive inglês, analisando os
traços e heranças genéticas dos suspeitos.
Numa
carnavalização da época imperial do Rio de Janeiro, o livro insere-se na
tendência frequentemente explorada pelo romance brasileiro dos últimos anos de
estabelecer diálogos intertextuais com obras, personagens e situações. Um texto
de ficção inclui no seu universo situações ou figuras extraídos de outros
textos, provocando no leitor um efeito de estranhamento propiciado pela quebra
de fronteiras entre o real e o fictício.
Se,
em obras do passado, o recurso ao diálogo intertextual às vezes se aproxima do
plágio, quando um novo texto toma como patamar o universo criado por uma obra
anterior, modernamente, a intertextualidade é usada para desconstruir os
modelos tomados de empréstimo. É o que faz este romance com o personagem
Sherlock Holmes, tornado universalmente conhecido pela narrativa de Conan
Doyle.
O
famoso detetive recriado por Jô Soares é uma desmontagem gaiata e bem sucedida
da personagem clássica da novela policial. Esta irreverência tropical do
narrador de O Xangô de Baker Street
tem suas raízes fincadas no canibalismo dos modernistas de vinte e dois. Um
verdadeiro banquete antropofágico condimenta com dendê, pimenta malagueta e
outras especiarias encontradas nas bodegas de qualquer esquina a tradição
literária de outras culturas.
Não
é por acaso que o D. Pedro II e a Sarah Bernardt vivificados pela pena de Jô
Soares conversam sobre a vinda ao Brasil de um detetive inglês que usa o método
dedutivo para desvendar crimes, Sherlock Holmes. O erudito imperador lembra à
atriz que Edgar Alan Poe criou, nos seus contos de terror e mistério, um
detetive que trabalha mais com a inteligência do que com as mãos. Bernard
assegura ao monarca que o detetive real por ela recomendado ao imperador para
solucionar o roubo do valioso Stradivarius da Baronesa de Avaré, seu amigo
Sherlock Holmes, é bem mais competente do que qualquer detetive de ficção.
Neste
emaranhado de situações, o romancista Jô Soares aproveita para dar algumas
mostras de humor erudito.
O
Marquês de Salles, que perambula pela corte imperial brasileira, é um culto
leitor de Sade, enquanto um inculto comerciante português exclama diante de
fatos catastróficos: “É o inferno de Dantas”, apropriando-se da dantesca
criação italiana.
O
humorista Jô Soares entra nas nossas letras pela mesma porta que se abriu a
Stanislaw Ponte Preta ou a Millôr Fernandes, dois criadores de humor com lugar
de destaque no panorama editorial brasileiro. Resta-nos aguardar para saber se O Xangô de Baker Street revela um
romancista doravante frutífero e original ou se é uma manifestação isolada e
única de inteligência e de bom humor. Seja como for, o livro existe por si
mesmo, independentemente do lugar ocupado por Jô Soares na mídia televisiva.
Pode ser lido por qualquer leitor de bom gosto. Com muito gosto.
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De best-sellers e besteiras. Artigo
crítico sobre o livro O Xangô de Baker
Street, de Jô Soares. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 07 abr. 97, p. 7.