O baile
das
vaidadES
O artista é um autista. Embora a
analogia do significante, ou a lacanagem, seja gasta e, por isso mesmo, pouco
carregada de significado, não deixa de nos levar a intuir uma verdade.
Mas a recíproca nada tem de
aceitável: a ordem dos fatores altera o produto. Aqui, a matemática não fala. O
autista nunca será artista. As posições são inconciliáveis: ou ele abandona a
casa, a casca de caramujo, para sujar-se de areia e ser invadido pelo mar, ou
permanece autista. Fonte que se abastece a si mesma. Rio circular. Sede que se
sacia na uretra. Prisioneiro do deserto que vive dos próprios dejetos.
Vamos substituir a mistificação da irresponsabilidade,
a celebração do desatino pela da metanóia. Meta que nos monta no seu
cavalo para ganhar a guerra de Tróia. Rubro corcel de crinas em chamas. (O
termo metanóia é aqui utilizado para designar tão somente a viagem através da
loucura com retorno, ou a transformação do desatino em força produtiva: a
volta.)
A arte é um momento de vertigem
lúcida, voragem lúdica. Processo que vai da ferida à cicatriz.
Explico a aparente contradição: ser
autista pode ser o ponto de partida do artista, mas não o de chegada. O texto é
sempre a superação de si mesmo. Aquele que investe demasiadamente na sua
própria patologia de estimação se afasta da arte. É preciso dividi-la, doá-la,
encontrando no outro o seu espelho. Só assim se desfaz enquanto forma
patológico e se refaz em forma de arte, preservando o ser, antigo e renascido.
A obra é um espelho, onde o leitor
crítico se reflete. É também uma postura analítica, onde se permite ou pede ao
leitor que fale suas fantasias: a metáfora é o divã.
No outro, o poeta se perde, se
encanta, se encontra. Só no outro. Dentro de si habita o vácuo, que se chama a
si mesmo.
A máscara de um é a face do outro.
Quando Freud vê em Hamlet o édipo,
ele não descobre o édipo de Shakespeare, mas o dele mesmo, sob o
pretexto do texto. A obra de arte é um objeto estranho, que não se parece com
nada conhecido. Por isso, precisamos declará-la parecida com alguma coisa.
Classificá-la para compreendê-la. É como o objeto enfeitiçado caído da
tempestade no meio da floresta de símbolos. Um coelho contou aos outros coelhos
que parecia uma cenoura. Uma abelha, às outras abelhas que parecia uma flor. Um
macaco, que parecia uma banana. Um psicanalista, que parecia um falo. Narciso,
que parecia um espelho.
Mas é na flor e no espelho, na
cenoura e na banana, no falo e no falso que o artista se encontra. A verdade é
a mentira no espelho.
O movimento dialético da criação
estética exorciza os onze mil demônios e vai em busca do outro como fonte onde
se mira e sacia a sede do criar. Nem mesmo um movimento de desespero e
recolhimento como o Romantismo Artístico pôde se alimentar da subjetividade
pura que recusa a transfusão de saudabilidade do encontro com o outro. Os
românticos que persistiram no cultivo da desconfiança pelo mundo circundante,
se supondo perseguidos, incompreendidos e predestinadamente superiores ao seu
meio, emigram, cada vez mais dos ensaios e compêndios que tratam de questões
estéticas para os que analisam a síndrome da paranoia.
A obra de arte não nasce de uma
reação autoplástica, onde o indivíduo se volta para dentro, concentrando
as influências em si mesmo, como numa conversão histérica – que se entorta na
impotência de explodir o mundo.
(Autoplástico e aloplástico
são termos que qualificam dois tipos
polares de reação ou de adaptação. O
primeiro dá conta de uma modificação
interior, ou do organismo, e o segundo de uma
modificação do meio circundante.
Segundo Laplanche, J. & Pontalis, no
seu Vocabulário da psicanálise, Ferenczi fala de adaptação autoplástica como
um mecanismo primitivo, em que o organismo só tem influência sobre si mesmo e
não realiza mais do que mudanças corporais, relacionando-o à conversão histérica.)
A arte é uma conversão estética que
entorta e desentorta o mundo coxo – e se mantém intacta. O autoerotismo, ao
masturbar o saber, destrói a arte, que nasce e vive de um processo de interação
onde o artista projeta sua influência, de dentro para fora, e introjeta o
patrimônio cultural comum, de fora para dentro. A ação do homem sobre o
exterior é um modo de manter seu próprio equilíbrio, reduzindo a exaustão da
distância entre o signo selvagem da arte e a fala civilizada.
Se aceitarmos que
a arte se exerce a partir de uma oposição à fala civilizada, isto é,
que ela não se encerra nos limites de um momento histórico, cristalizado na linguagem
de uma época, teremos para a semiótica poética um signo selvagem,
conforme nossa proposição no livro O signo selvagem, traduzido e
publicado nos Estados Unidos por Hugh Fox, em 1983. Argumento correlato tivemos
oportunidade de defender na proposição “O Significando: superação da dicotomia
do signo linguístico na semiótica poética”, apresentado em 1977 ao xv
Congrès International de
Linguistique et de Philologie Romane.
Não por acaso, em muitos, a “obra
de arte” é uma neurose, uma ilusão enganosa e consolatória destinada a manter
intocados os núcleos do silêncio. Em alguns, poucos, a neurose é uma obra de
arte, ela se supera na produtividade dita texto e transforma este
silêncio no significado que fala. Mas isso só é dado àqueles que voam nas asas
da metanóia ou usam sua expressão como forma de fazer o forte explodir (sob os
olhos dos fracos): que ao invés de implodirem, se destruindo, denunciam e
destroem a distância entre sua sensibilidade e as eternas teias onde se tece a
civilização.
A impotência de reagir, ou a
submissão dos vencidos, se encerra na esterilidade das confissões e
confidências. A obra de criação não se ergue no desabafo, bufa mental,
nem nos lamentos, dementes, mais próprios para os diários íntimos e os cadernos
de confidências dos adolescentes antigos. Brejeiros álbuns de recordações, hoje
condenados ao museu do desuso, e substituídos por arrogantes ejaculações
“artísticas”. Cada queixa, cada dor de cotovelo, converte-se num pretenso
poema.
Autoinfecção, autolatria, autogamia
– autor. Para muitos artistas, mais autistas que artistas, a sequência é um diagnóstico
– que, às vezes, ah!, resulta em concorridas vernissages e noites de
autógrafos. (O termo autogamia é empregado no sentido corrente em biologia, como
fecundação do óvulo pelo espermatozoide proveniente do mesmo animal, ou como
fertilização de uma planta pelo seu próprio pólen.)
Quase sempre a racionalização
mascara as neuroses de estimação sob a fantasia do talento. Os garbosos gênios
incompreendidos, sob os aplausos delirantes das tias e dos amigos e comensais
da família, tomam a sua falta de habilitação para transitar no mundo exterior
como um sintoma da arte. Mas a arte não tem sintoma, ela é um sintoma. Social, supra
individual.
A arte é a manifestação simbólica
de um conflito que se equilibra sobre o fio de uma navalha. Sem corte.
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O baile das vaidades.
Artigo sobre narcisismo e paranoia nos artistas. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 28 out. 96,
p. 7.