arquitetura
dO fragmentário
Quando as tropas de Napoleão tentavam submeter os reinos
da Europa, causando humilhação e pânico, as exóticas terras do continente
Americano deixaram de ser uma aventura para se tornar um chamado paradisíaco. A
família real portuguesa abandonou o pequeno reino para se instalar na Colônia.
No início do século XIX, o imaginário romântico pintava a exuberante natureza
das terras inexploradas como lugar edênico.
É para este país das maravilhas que seguiu uma princesa
da Áustria, Dona Leopoldina, Arquiduquesa da Casa de Habsburg, filha do czar
Francisco I. Apesar de enfraquecido e espremido entre a espada de Napoleão e a
“amizade” dos ingleses, o reino de Portugal tinha uma colônia quase tão vasta
quanto a Rússia, dizia-se em Viena. Era conveniente fortalecer esta coroa,
através do casamento de uma Habsburg com o príncipe herdeiro Pedro de Orleans e
Bragança.
Dona Leopoldina desembarca no Rio de Janeiro com uma
delegação formada por diplomatas, naturalistas, músicos, pintores, botânicos;
enfim, uma pequena e expressiva mostra do que era a Áustria: o império das
ciências e das artes. Desde que lhe foi enviado um retrato do pretendente, a
sonhadora Leopoldina se apaixonou pela beleza do jovem príncipe. No primeiro
encontro, a sensualidade do esposo e a exuberante espontaneidade daquela gente
deixaram-na aturdida.
O livro de Gloria Kaiser, Dona Leopoldina. Uma Habsburg no trono brasileiro, fica a meio
caminho entre a biografia e o romance histórico. E esta indecisão é o seu
defeito maior. A autora quer resgatar o que há de verdade interior (não a
verdade factual) na vida da Princesa da Áustria e Imperatriz do Brasil. O
epílogo do livro assume a objetividade de um estudo, enquanto os seis capítulos
fragmentam o impacto ficcional do tempo psicológico que rege a narrativa.
Conduzido por cortes bruscos de tempo e lugar, o leitor começa a assumir a
lógica da ficção, quando as transcrições documentais, substituindo o diálogo,
remetem a uma outra lógica – cartesiana. Numa passagem temos a narrativa, a
apresentação dos fatos, em outra temos discussão de ideias. O texto oscila
entre a função poética da linguagem e a reflexão científica.
De repente, não mais se tem certeza dos fatos:
verdadeiros, inverossímeis? Algumas transcrições, de documentos ou de inventos
da memória, sugerem a pesquisa histórica; outras, o descompromisso da fantasia.
Uma assustada Leopoldina, perdida na floresta e
protegendo as filhas do aguaceiro e da noite, é salva pelos índios. Adiante, a
princesa sozinha, desce do cavalo e se senta na calçada, por onde passam
escravos, vendedores e outra gente comum. Na página vinte, uma cena folclórica
para o olhar do turista:
“Ela achou Madame Goufferteau imediatamente; a praça da
igreja está cheia de mães-de-santo. Os grupos de meninas cochicham e riem
baixinho; trocam-se amuletos, vendem-se ervas e condimentos. Em troca de um
brinco roubado da patroa qualquer uma dispõe-se a perguntar os endereços à
Zeladora de Santos, Ialorixá. Uma missa negra ou branca é muito cara, as
Mães-de-Santo ficam sentadas, escondidas atrás de rolos de fumaça, queimam
madeiras e ervas amaldiçoando, espantando maus espíritos, abençoando pessoas.
Todas as pragas, desejos e amuletos prometem paixões desenfreadas — do mesmo
modo é com os santos. Leopoldina achava que aquilo só existia em livros.”
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Arquitetura do fragmentário. Artigo crítico sobre o livro
Dona Leopoldina. Uma habsgurg no trono
brasileiro, de Gloria Kaiser. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 15 set. 97, p. 7.
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