a alemanha de
hitler
e de sChreber
Os distúrbios mentais que atormentam o indivíduo e
constituem objeto de estudo dos psicanalistas e de outros profissionais em
saúde mental, às vezes, adquirem um alcance surpreendente e migram do plano
individual para o social. A mesma paranoia típica de um conjunto de pessoas
consideradas doentes pode se manifestar como traço nacional.
Quando o desvario de um líder autoritário estabelece
identidade com os anseios de grandes camadas da população, fatos de ordem
psíquica, por mais estranhos que sejam aos comportamentos tidos como normais,
são legitimados por um mecanismo que Rousseau chamou de contrato social. As
pessoas incorporam e implicitamente legitimam atitudes anteriormente
condenadas.
A chamada Alemanha de Hitler é um exemplo conhecido do
fenômeno, por sinal, bastante desenvolvido no âmbito da cultura germânica. Um
caso de paranoia que se tornou célebre nos fins do século passado ocorreu com o
dr. Paul Schreber, juiz presidente da Suprema Corte da Saxônia. Depois de sete
anos de internamento em hospitais psiquiátricos, Schreber teve alta e escreveu
as famosas Memórias de um doente dos nervos,
nas quais relata situações delirantes envolvendo os limites do poder. Se, por
um lado, o paciente tinha o dom de se comunicar com Deus, por outro lado,
sentia-se fragilizado diante de possíveis atitudes secretas do seu médico que
“mesmo sem estar presente falava diretamente com meus nervos”.
O livro de Schreber mereceu a atenção de Freud, que
desenvolveu um estudo clássico sobre o tema. Mas as manifestações delirantes de
grandeza são bastante comuns, assim como o uso desenfreado do poder provoca a
reação de alguns. Kafka deixa de ser o menino castigado, de modo implacável,
por um pai autoritário, para se tornar o construtor de um mundo ficcional onde
as malhas do poder corrói a tudo e, consequentemente, a si mesmo. Nietzsche
ergue o seu castelo de senhor dos ídolos mais ou menos na mesma época em que se
desenrolava o drama de Schreber.
A Alemanha de
Schreber: Uma história secreta da modernidade é o título do livro
de Eric Santner, lançado no ano passado nos Estados Unidos, cuja tradução é
agora publicada pela Zahar. A partir das discussões de Freud, Walter Benjamin,
Derrida, Foucault e especialmente de Elias Canetti, Santner estuda as
correlações dos distúrbios psíquicos ocorridos no campo privado com a esfera
pública. A paranoia de Schreber estaria assentada num conjunto de obsessões que
caracterizam o final do século passado e o início deste século. Obsessões que
ganharam forma perceptível na prática nacional-socialista de Hitler e em outros
regimes ditatoriais não analisadas pelo autor de A Alemanha de Schreber.
O homem moderno, que começa a nascer nos fins do século
passado e se afirma no início deste século, é marcado por traços de identidade
mais ou menos comuns aos seus contemporâneos, estudados nos tratados sobre a
modernidade. A estas características, uma outra, esquecida ou ocultada, estaria
agora sendo acrescentada pelo livro de Santner? A paranoia? Ao identificar as
matrizes do caso Schreber, seus poderes e seus inimigos secretos, com os
elementos determinantes da história
política do nosso tempo, o autor de A
Alemanha de Schreber subintitula o seu livro Uma história secreta da modernidade.
Perpassada por uma camada de ironia, a escolha sintetiza
uma das teses debatidas. Não é casual, portanto, a eleição de textos literários
de Hoffmann e Kafka, por exemplo, ou da indeterminada escritura de Nietzsche.
O livro de Eric Santner vem se juntar às mais importantes
articulações da psicanálise com as teorias da cultura, dando continuidade a uma
vertente inaugurada pelo próprio Freud e seguida por destacados pensadores do
nosso século. É por isso que Diana Fuss afirma que “A Alemanha de Schreber é a mais importante publicação de teoria
psicanalítica desde O anti-Édipo de
Deleuze e Gattari.” Entendendo-se aqui a expressão “teoria psicanalítica” como
designação de uma parte dos estudos multiculturais. A afirmativa de Fuss pode
ser complementada pela observação de Slavoi Zizek: “A Alemanha de Schreber é um verdadeiro achado, estabelecendo um
noivo padrão de uso de ideias psicanalíticas para analisar fenômenos políticos
e ideológicos.”
Na paranoia, o sujeito que tudo pode é também fragilizado
diante de perseguidores com motivos secretos. Aí está o elo entre a paranoia de
um indivíduo e os regimes de exceção que governam os países. Do mesmo modo que
os ditadores se investem de poderes absolutos, eles se sentem ameaçados por
todos aqueles que foram privados de qualquer forma de poder. Os prisioneiros,
os desterrados e até mesmo os mortos podem estar tramando secretamente.
_________________________________
A Alemanha de Hitler e de Schreber. Artigo crítico sobre
o livro A Alemanha de Schreber: Uma
história secreta da modernidade, de
Eric Santner. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 03 nov. 97, p. 7.
* * *
Correspondências para esta coluna:
R. Alberto Pondé, 147/103. CEP 40.280-630,
Salvador,
Ba. Fone 351-8971