Afinidades eletivas: Nietzsche e Pessoa
Fernando
Pessoa conseguiu ocultar de muitos dos seus leitores a forte impressão que lhe
causou a leitura de Nietzsche, não obstante as afinidades divergentes entre a
sua visão do mundo clássico e da arte grega com a perspectiva nietzschiana.
Georg Rudolf Lind (na sua Teoria poética de Fernando Pessoa) sublinha
que o poeta português deve ao filósofo alemão, dentre outros conceitos, a
diferenciação entre a moral do senhor e a moral do escravo, além da polaridade
entre o dionisíaco e o apolíneo.
Apesar
do caminho seguido nas linhas aqui traçadas ser divergente do ponto de vista de
Lind, quanto a alguns aspectos importantes, convém citar o estudioso alemão:
"Não é de passar por cima o fato de o ideal grego de Pessoa ter um caráter
apolíneo(...). Todos os traços dionisíacos, descobertos por Nietzsche na
cultura helênica, são propositadamente descartados por Pessoa, para não
prejudicar a sua idealização dessa cultura. A Grécia de Pessoa torna-se assim a
personificação abstrata de certas regras cuja revivência beneficiará a arte
moderna. Donde serem Ricardo Reis e Alberto Caeiro poetas apolíneos: Álvaro de
Campos, o dionisíaco de entre os heterônimos, é cuidadosamente apartado por
Pessoa do neoclassicismo.".
Sabemos
que a juventude do poeta foi marcada pela leitura sistemática de obras filosóficas,
científicas e literárias que caracterizaram o seu ambicioso programa de estudos
como autodidata, especialmente depois que abandonou o Curso de Letras, no qual
se matriculou em 1906, após sua vinda de Durban para Lisboa.
É
por volta de 1912 que Ricardo Reis, com o paganismo e o espírito clássico, se
delineia na mente de Pessoa. Caeiro aparece um ano e meio depois, entrando
triunfalmente no círculo pessoano com a escritura dita automática de "O
guardador de rebanhos". Completando a operação dialética tipicamente
pessoana, não estaria o criador dos heterônimos estruturando sob o nome de
Caeiro um poeta que pudesse vencer o desafio de se situar para além da
classificação nietzschiana?
Nem
apolíneo nem dionisíaco: o único poeta da natureza; apenas.
Negar
radicalmente — até a eliminação — tudo aquilo que interfere no seu trabalho, é
uma estratégia de Pessoa para realizar um diálogo com a cultura livresca ou a
tradição intelectual, em lugar de aceitar o papel de mero continuador. Assim,
Pessoa nega Nietzsche para afirmar Pessoa, na medida em que afirma Nietzsche
como alimento da cultura.
Esta
angústia da influência, na terminologia crítica de Harold Bloom, está explicada
numa nota sem data nos cadernos de Pessoa: "Com quem se pode comparar
Caeiro? Com bem poucos poetas. Não, diga-se desde logo, com aquele Cesário
Verde a quem ele se refere como a um antepassado literário, embora uma espécie
de antepassado antecipadamente degenerado. Cesário Verde exerceu sobre Caeiro a
espécie de influência que pode ser chamada de simplesmente provocadora de
inspiração, sem transmitir qualquer espécie de inspiração. Um exemplo familiar
ao leitor é a verdadeira influência de Chateaubriand sobre Hugo, homem totalmente
diverso, pessoal, literária e socialmente."
Absorvendo
Nietzsche, como absorve toda experiência lida e vivida, Pessoa destrói um mundo
organizado para erguer os alicerces do seu próprio mundo — fortemente
sedimentado pelos materiais recolhidos.
Alberto
Caeiro bem pode ser visto como um poeta criado com o objetivo de superar a
polaridade entre Apolo e Dionísio, desfazendo a esquemática classificação dos
criadores como apolíneos ou dionisíacos. Não esqueçamos que Pessoa esboçava uma
teoria de inspiração clássica, segundo a qual a arte residiria essencialmente
no equilíbrio. Assim, a consciência apolínea e o arrebatamento dionisíaco só
têm existência enquanto elementos estruturais interdependentes. Quanto maior a
emoção, maior terá que ser a razão; quanto penetrante a sensibilidade, mais
arguta a inteligência; quanto mais forte o turbilhão destruidor, maior terá que
ser o poder de construção – é o que Pessoa repete de forma diversa.
Apolo
e Dionísio servem de pontos cardeais a Pessoa; mas sua caminhada pela floresta
do alheamento toma outros rumos e atalhos que dispensam a direção indicada.
"Exigir de sensibilidades como as nossas, sobre que pesam, por herança,
tantos séculos de tantas coisas, que sintam e portanto se exprimam com a
limpidez, e a inocência de sentidos, de Safo ou de Anacreonte, nem é legítimo,
nem razoável." Tal observação de Pessoa dá conta não só do seu processo de
refatura da tradição como lança luzes sobre a impossibilidade do projeto de um
poeta como Caeiro fora da concepção heteronímica; concepção esta onde um novo
mundo é criado para preservar a inocência de um novo tipo de poeta.
Similar
processo fágico, não mais sobre um autor mas sobre toda
uma tradição, é o do
tratamento impessoal dado à lírica, através do
texto e da fragmentação
heteronímica. A escritura pessoana representa uma retomada
crítica da divisão
tripartida entre o lírico, o épico e o dramático,
devorando e digerindo a
classificação secular. Através do fenômeno
da despersonalização, que não é
somente seu, mas da modernidade, Pessoa, impondo um traço
pessoal à despersonalização,
nega a característica até então mais evidente do
gênero lírico: a expressão do
eu.
Migrando
do território da subjetividade, onde se formou, a lírica se afirma como o lugar
do outro. É o que Pessoa chama de dramatização da emoção, exigindo do lírico a
despersonalização do dramático e a alteridade coletiva do épico: "Por
dramatização da emoção entendo o despir a emoção de tudo quanto é acidental e
pessoal, tornando-a abstrata – humana."
Os
conceitos clássicos, que até então davam conta dos traços definidores do
lírico, do épico e do dramático, são postos em crise. Traços definidores da
tripartição clássica passam a ser constituintes da poesia moderna, propondo, a
começar pela teoria dos gêneros, uma outra teoria da criação literária.
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Afinidades eletivas: Nietzsche e Pessoa. Ensaio.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 16 set. 96, p. 7.