A bolsa ou a vida
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Armadilha para Mkamba,
de Ivan
Sant’Anna,
é um romance
que prende o
leitor
a partir do
suspense financeiro,
dos ganhos e
perdas
nas bolsas.
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Livros de suspense, envolvendo crimes,
situações perigosas ou fenômenos desconhecidos, costumam atrair milhares de
leitores. O ruim destas obras é o texto, ou a narrativa, quase sempre cheio de
lugares-comuns.
As situações são concebidas e realizadas
às pressas para atender a um tipo de leitor intelectualmente ingênuo e
despreparado. Mas isto não quer dizer que a fórmula seja aplicável tão somente
a produtos “made in Paraguai”, destinados a consumidores que não distinguem o
original da contrafação. Que não veem diferença entre um uísque fabricado em
Foz do Iguaçu e um destilado na Escócia.
Em linguagem óbvia, este é o problema
dos livros destinados ao sucesso fácil junto ao grande público. Mas convém
insistir que, há bastante tempo, escritores de qualidade utilizam os recursos
“industriais” da cultura de massa como base amplificadora da recepção do texto,
sem que a obra caia nos lugares comuns do kitsch.
É o caso de Armadilha para Mkamba, de Ivan Sant’ Anna, publicado pela Rocco.
Se há vinte ou trinta anos atrás, o
consenso dos leitores cultos deixava de fora da boa literatura recursos e
soluções consagrados pela cultura de massa, com o crescimento das estratos
pouco escolarizados, o apelo a faixas mais largas do público deixou de ser um
defeito para se transformar numa virtude.
O fenômeno é perfeitamente compreensível
e legítimo. Ao longo da sua história, a literatura passou por períodos distintos,
chamados de movimentos ou de estilos de época, em que novas gerações abominavam
o gosto da geração anterior e impunham outros padrões de julgamento.
O Romantismo, estilo de época que
dominou o século XIX, foi uma resposta da arte ao gosto duvidoso (segundo os
padrões clássicos) de uma nova classe social, a burguesia. O comerciante,
preocupado com os negócios e com o lucro, não tinha tempo para os requintes
formais da literatura neoclássica. Conhecer a tradição ocidental, como forma de
melhor compreender o texto lido, era algo que não fazia parte das preocupações
do novo público. Daí, a literatura romântica apelar para a emoção, em lugar da
razão.
O neoliberalismo econômico, em
substituição ao ideal de um estado paradisíaco e supridor das necessidades do
sujeito, repõe o homem na mesma situação dos seus antepassados, quando a
acumulação individual de riquezas passou a ser o ideal supremo. A única
garantia de uma vida digna.
Como, então, exigir deste homem
consagrado ao lucro o cultivo de uma sensibilidade aplicável não apenas à
realidade vivida, mas também às projeções e ficções de uma outra realidade?
Caberia ao artista projetar o seu voo e
esperar que os outros lhe sigam, ou condicionar o trajeto às limitações dos
possíveis companheiros de aventura?
Há algum tempo, criadores e estudiosos
da literatura responderam à questão. Umberto Eco, no inovador tratado de
estética Apocalípticos e integrados,
escrito em parte nos anos sessenta, reúne os fundamentos da sua futura obra de
ficção.
Partindo de lugar diverso e fundamentos
outros, Ivan Sant’ Anna trocou a bem sucedida profissão de especulador nas
bolsas norte-americanas pela construção de situações imaginárias. Sua
intimidade com os segredos do mercado de capitais, antes empregada em situações
geradoras de tensão, é agora utilizada para produzir obras destinadas ao
deleite do público.
Em Armadilha
para Mkamba ele projeta o foco narrativo sobre três cenários diferenciados.
Uma
frágil república africana,
recém-democratizada, cuja moeda pode ser derrubada por um
megaespeculador,
enquanto o presidente se divide entre os humores do FMI e a tentativa
de
reeleição. Embora esta republiqueta comandada pelos
operadores do mercado
internacional possa lembrar a triste realidade brasileira, o romance
trata mesmo
é de um país imaginário da África. Qualquer
semelhança é obra da globalização.
O segundo ponto iluminado pelo foco
narrativo é o escritório do bilionário Peter Page, em Londres, onde alguns dos
melhores traders do mercado ditam a
flutuação das bolsas.
O terceiro é uma pequena cidade entre os
Estados Unidos e o Canadá, onde uma operadora independente se refugiou. Na
solidão da sua casa, Laura Gibson divide o tempo entre lances geniais que
constituíram sua reputação de trader e as generosas doações a obras de
preservação ambiental.
Os pontos de tensão se situam nas
investidas de Page para destruir a moeda de Mkamba e na romântica solidariedade
de Laura ao país africano. De um lado, em Londres, Page faz a moeda despencar,
do outro, Laura investe na sua estabilidade.
Mas não imagine o leitor que todos nós,
alheios aos movimentos da bolsa, fiquemos indiferentes à trama do romance de
Ivan Sant’Anna. Outros ingredientes completam o quadro e asseguram o prazer da
leitura.
O interesse e o envolvimento do leitor
vão crescendo, página após página, como o saldo de um bom jogador de apostas
numa rodada protegida pela sorte. À proporção que o saldo cresce, o
leitor-jogador não consegue abandonar o jogo. Cada lance é definitivo, a
atenção flutua pelas páginas até o inesperado final do livro. Além da surpresa
reservada para os últimos lances, Ivan Sant’Anna faz sua obra crescer, ao
propor uma reflexão sobre os destinos dos pequenos países. A velha ideia de
democracia é sepultada no território da globalização. Deslendo o título de um
antigo livro de Drummond, convém lembrar a advertência do assaltante: a bolsa
ou a vida.
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A bolsa ou a vida. Artigo crítico sobre o livro Armadilha para Mkamba de Ivan Sant'
Anna. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 29 jun. 98, p. 7.