A marcha
do extermínio
Episódios de brutalidade e intolerância racial que
exterminaram seis milhões de judeus foram trazidos à tona pelos sobreviventes e
seus familiares. A história e a literatura, o teatro e o cinema registraram
momentos dramáticos, mas, de repente, emergem das sombras fatos desconhecidos e
inimagináveis. Além dos pelotões de fuzilamento, das câmaras de gás, das valas
mortuárias cavadas pelas próprias vítimas, os nazistas utilizaram um outro
método de extermínio: a marcha forçada por dias, semanas, meses, até o
aniquilamento total.
O livro de Michael Stivelman, A marcha, lançado em março pela Nova Fronteira, desponta como um
testemunho surpreendente e capaz de despertar a solidariedade de milhares de
leitores. Judeus e não judeus. Nestas páginas emocionantes, narradas com
clareza e minuciosa precisão de quem traz consigo os acontecimentos ainda
vivos, são expostas as misérias e as grandezas da humanidade. É o ser humano,
para além da nacionalidade ou da raça, que se constitui protagonista do livro.
O vilão é o ódio racial, a falta de solidariedade.
Michael Stivelman não escreveu estas duzentas e poucas páginas para destilar
ressentimentos, nem para dividir os homens em raças e credos. Sue intuito é
registar a existência de homens que sabem odiar e homens quer sabem amar.
Apesar da tragédia que destruiu parte da sua família, o menino, órfão de pai,
responsável pela mãe doente, conseguiu identificar a bondade e a grandeza do
ser humano.
Por mais de uma vez, o pequeno Michael e sua mãe foram
socorridos por desconhecidos de outras terras, outras raças e outras religiões.
Cristãos, comunistas, enfim, seres humanos. O livro A marcha tem o mérito de representar o testemunho de um judeu
submetido ao julgo nazista que, ao despertar do pesadelo, continua capaz de ver
o mundo com olhos claros e limpos. As humilhações, terrores e misérias não
venceram as qualidades de ser humano trazidas dentro de si.
Quando as tropas nazistas da Romênia subjugaram a
Bessarábia, hoje república da Maldova, dezenas de comunidades judaicas foram
aniquiladas. A riqueza e a prosperidade de milhares de judeus despertaram o
ressentimento dos vizinhos pobres que, estimulados pelos nazistas, se
transformaram em inimigos impiedosos.
Até mesmo o melhor amigo de Michael, seu companheiro
Alex, exclamou aos berros: ”Judeu sujo!
Some já daqui, vá embora, senão vou matar você! Vocês judeus são piores que
cobras venenosas e devem ser exterminados. Viva o nosso grande líder Hitler!
Heil Hitler!”
No fim da guerra, as tropas soviéticas retomam o controle
da região. Muitos judeus ocupavam postos de comando no exército vermelho e
Michael pôde, finalmente, se vingar de Alex. O pai do seu ex-amigo, engajado ao
exército nazista, foi preso pelos soviéticos. É nesta passagem que se dá a
redenção do menino Michel, ao abrir mão da vingança sobre o pai de Alex.
Seu gesto é possível graças ao exemplo de um personagem
admirável, talvez a figura mais forte e marcante que salta das páginas do
livro: o major Volódia Stivelman, comissário chefe do serviço de inteligência
da URSS.
E o leitor se pergunta: Como um soldado investido de
funções policialescas, em plena guerra, manteve intocados seus sentimentos de
justiça e de respeito ao outro? O poder não alterou sua grandeza humana. Os
inimigos mataram seus filhos, mulher, parentes; mas Volódia não se deixou
dominar pelo ódio. Ele foi o mestre e pai afetivo do menino órfão. Ele é também
a personagem cuja voz ecoa nos melhores momentos do narrador de A marcha.
O exemplo da personagem impõe a diretriz ao pensamento
que dá sustentação ao livro. Daí a sua importância, o seu lugar de documento
humano que ultrapassa as circunstâncias pessoais de Michael Stivelman e se
inscreve como advertência contra o ódio e a discriminação.
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A marcha do extermínio. Artigo crítico sobre o livro A marcha, de Michael Stivelman. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 6 abr. 98, p. 7.