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Fernão Mendes Pinto,
cronista de viagem
ou prosador de
ficção?
As leituras da obra
de Mendes Pinto giram em torno de duas vertentes: uma que vê ironia e crítica à
hipocrisia do mundo cristão;
outra que a identifica como expressão do
pensamento vigente.
Cid Seixas
A revisão
crítica da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto pelos estudiosos da
segunda metade do século XX teve, a princípio, a tendência de emprestar a esse
livro ainda mais deslumbramento que o olhar do viajante experimentou. Se a
escrita já sugere lances de ironia e de fina percepção dos equívocos e
desvarios da sociedade portuguesa quinhentista, estudiosos como Rebecca Catz
(1978, 1981, 1983) ou Antonio José Saraiva (1971) desentranharam das suas
leituras ainda mais vislumbres de ironia e consciência crítica.
Opondo-se à
tese até então aceita segundo a qual a Peregrinação é uma sátira
impiedosa das práticas de proveito e hipocrisia do cristianismo português quinhentista,
perfilam-se estudiosos como Aníbal Pinto de Castro, em Portugal, e, mais
recentemente, Francisco Ferreira de Lima, no Brasil.
A direção
apontada por Rebecca Catz, ao afirmar que Mendes Pinto não tinha o cristianismo
como modelo, é refutada com veemência, especialmente quando essa estudiosa,
apesar da precariedade das provas arroladas, conclui que o autor da Peregrinação
era judeu e, como tal, teria desenvolvido nuances de crítica e de ironia que
somente uma leitura fina como a sua desvendaria, séculos mais tarde. Ela
acreditava ler aquilo que o autor pretendia que se lesse.
O excesso
de deslumbramento no olhar de um ou de outro estudioso suscitou a revisão dos
pontos de vista tradicionalmente aceitos. Hoje, na esteira da refutação dos
pressupostos mais fantasiosos, especialmente os de Katz, a evidente natureza
polissêmica da escritura de Mendes Pinto é obscurecida, ou negligenciada, pelos
estudos que pretendem devolver ao texto a sua “verdadeira dimensão”. O
propósito de evitar os excessos de deslumbre exigiu uma análise pertinente e
rigorosa do contexto social quinhentista, onde a Peregrinação é
considerada principalmente como documento. O documento de viagem que sempre
pareceu aos leitores dos séculos passados.
Numa tal perspectiva, aqui chamada de revisionista, essa obra não veria
mais do que a sua época costumava ver. Ela não seria a sátira impiedosa nem a
crítica irônica dos valores religiosos e éticos então vigentes. Aquilo que
queremos ler, quando lemos o texto de Mendes Pinto, não pertenceria a ele, mas
à nossa ideologia de leitores. Ainda segundo esse ponto de vista, a diferença
de perspectiva imposta pelas ideias do nosso século estaria interferindo no
sentido da obra estudada.
Mas será
que isso é indesejável? Será que o significado de uma obra é apenas constituído
pelo momento da sua produção? E não, também, pelo da sua recepção?
O que
importa numa obra literária é a intenção do autor ou aquilo que o texto diz,
mesmo sem intenção de dizer?
A
permanência e a atualidade da Peregrinação são devidas, principalmente,
a sua falta de sinceridade. Isto é, à sua natureza ficcional, onde os fatos
vividos por um personagem real chamado Fernão Mendes Pinto, mais os fatos
sonhados e inventados, e os fatos vividos por outros viajantes, são todos
reunidos num mesmo personagem ficci-onal chamado também de Fernão Mendes Pinto.
Ora, se o
autor pressentia, ou mesmo, se tinha uma certa consciência de que estava
fazendo ficção – para falar com mais propriedade de uma realidade que não cabia
nos estreitos limites da realidade estabelecida –, ele bem que poderia não ser
sincero nas suas ingênuas genuflexões diante de uma prática impiedosa que
correspondia ao discurso cristão mais piedoso da sua época.
Tratamos
aqui, portanto, da questão da intenção do autor, apesar do sentido da obra não
ser um servo fiel da sua intenção consciente. Como a crítica revisionista
trabalha no nível dessa consciência cristã do século XVI, a sua leitura da Peregrinação
pode não ser a mesma do leitor comum dos nossos dias, que estaria mais próximo
do entusiasmo; mesmo do entusiasmo de Rebecca Katz.
Observe-se
que o critério de objetividade presente na abordagem revisionista se, por um
lado, é capaz de recuperar e reconstituir o quadro das ideias do século XVI,
por outro lado, pode implicar uma leitura menos polissêmica, menos literária,
portanto; e mais científica. Isto é: uma leitura do ponto de vista de uma
sociologia das ideias, de uma teoria das ideologias, ou de uma sociologia do
conhecimento.
Pergunto
então: essa leitura metodo-logicamente estruturada visando compreender a
verdade do viajante não negaria, não desconheceria, a natureza literária do
texto? O texto literário não seria, quase sempre, uma dissimulação? Por que
então aceitá-lo como confissão verdadeira?
Aquele trapacear com a linguagem do qual o velho Barthes (1951, 1972)
fala com muita propriedade não estará excluído da Peregrinação, se ela
for lida como um texto que testemunha e dá fé de uma verdade?
O que restará desse texto – o texto que Mendes Pinto escreveu e que nós
lemos como literário – sem as suas possíveis dissimulações?
Enfim: é legítimo analisar um texto, considerado pela tradição como
literário, a partir de critérios capazes de descarnar os sentidos circundantes,
aderentes ao sentido por acaso previsto – ou imprevisto – pelo autor?
Desde a sua publicação, em 1614, que essa obra, deslocada do contexto
documental das narrativas de viajantes, passou a ser vista como um dos tantos
relatos de viagem. Por isso, a ingênua glosa do seu nome:
– Fernão, Mentes?
– Minto.
Fernão Mendes Pinto era tomado como uma testemunha ocular e infiel. Mas
quando nos colocamos diante de uma escolha: continuar lendo a Peregrinação
como simples relato de viagem ou passar a lê-la como prosa de ficção, como obra
de arte verbal, portanto, os critérios de análise precisam ser revistos. E isso
faz diferença. Se aceitarmos que o Fernão Mendes Pinto que aparece como
narrador de tantas maravilhas, ao contrário de toda a expectativa dos seus
leitores dos séculos anteriores, não é o mesmo sujeito civil que escreveu o
livro, mas um personagem de ficção literária e, como queria Aristóteles,
universal, resultado de muitas experiências de muitos sujeitos, as
considerações a respeito do seu compromisso com o ideal cristão requerem outro
tom de abordagem e outro modo de compreensão.
Veja-se que
no episódio da Ilha dos Ladrões, Mendes Pinto e seus companheiros portugueses
roubam uma embarcação e depois celebram o crime agradecendo a Deus por mais uma
graça. Um menino tomado prisioneiro, um não-cristão, portanto, faz uma severa
crítica àqueles que atribuem a um milagre de Deus o bem-sucedido roubo.
Ao se
incluir entre aqueles que são censurados pelo menino, cabem aqui duas
conjecturas, o personagem-narrador Fernão Mendes Pinto seria a universalização,
no sentido aristotélico, de todo viajante, e esse menino seria a consciência
crítica do autor e de todo cristão que conseguisse ultrapassar a ética da
conveniência.
Ao reunir
num personagem traços gerais, universalizando-o, portanto, o autor da Peregrinação
estaria plenamente no território da ficção. É o que se dá com Antonio de Faria,
representação coletiva de todo português que empreende a viagem e os saques
dessa “cavalaria marítima” (conforme a expressão cunhada por Francisco Ferreira
de Lima (1998) e legitimada por Massaud Moisés). O destino desse personagem
seria assim uma advertência e uma crítica aos contemporâneos. Não importa tenha
existido ou não um Antonio de Faria real. O que importa é o Antonio de Faria
universal, construído pelo texto ficcional para servir de objeto da sua
crítica.
Entendido
desse modo, como um personagem de ficção que universaliza as ações de vários
viajantes portugueses, o protagonista Fernão Mendes Pinto seria também um
Antonio de Faria, como querem alguns estudiosos. Ou ainda, os personagens
Fernão Mendes Pinto e Antonio de Faria seriam desdobramentos ficcionais de um
mesmo sujeito real; ou, por outro lado, seriam uma bipartição de vários tipos e
sujeitos da sociedade da época.
No trecho
da Peregrinação em que o viajante destaca a perfeição da justiça chinesa
pelo fato dela se sustentar em juízes independentes, bons e justos, ele conclui
que pobres e ricos, ilustres ou desconhecidos são julgados com isenção. Como o
autor desse livro de viagens no país das maravilhas pertencia à classe dos
novos servos (não mais da terra e sim do capital), esse “testemunho verdadeiro” nos mostra como o
condão do discurso ficcional realiza um desejo das classes subalternas da
Europa do século XVI.
Assim
entendido, como personagem ficcional, Fernão Mendes Pinto pode legitimamente
figurar entre os primeiros portugueses a desembarcar no Japão, não obstante o
sujeito civil que escreveu a Peregrinação não figure entre esses. Assim
ele pode sobreviver a todos os naufrágios e se fazer presente aos mais
insólitos acontecimentos. Acontecimentos cuja recorrência e cuja dinâmica
dificilmente cobririam a vida de um homem. É um excesso de fatos, é um excesso
de atos, é um excesso de real para os limites de uma única vida. Somente
recriada através da arte, da ficção, uma vida conteria tanto real.
Mas a Peregrinação
tanto vem sendo lida como um verdadeiro relato de viagem, quanto como sendo uma
obra de ficção que finge fazer um relato verdadeiro. Lida a obra como um relato
(assim liam aqueles que acusavam o autor de mentiroso), a hipótese de o texto
conter ironia ou crítica à ideologia das cruzadas transplantadas para a
aventura marítima pode ser contestada. Observe-se bem: lida a obra como um
relato, a hipótese do texto conter ironia e crítica severa à moral cristã do
expansionismo pode ser contestada. Mas lida a Peregrinação como uma obra
de arte literária, todo sentido possível de ser atribuído deve ser visto como
possível; e não como impossível.
Os
investigadores que procuram o nome de Fernão Mendes Pinto entre os marinheiros
portugueses que pisaram pela primeira vez no Japão se inscrevem entre aqueles
que tomam esse livro emblemático como um mero relato de viagem, sem levar em
conta a passagem do documento à criação ficcional operada pela escritura do
autor. Num momento de constituição plena do fazer literário e de redefinição
dos gêneros, como o século XVI, um grande número de obras situa-se no
território da prosa doutrinária, conceitual, informativa etc., sendo importante
observar os momentos de ruptura entre o verdadeiro e o verossímil. Entre a
prosa de formação (ou mesmo de informação) e a prosa de ficção.
A partir de
tal perspectiva, compreende-se, inclusive, a ambivalência das situações
apresentadas na Peregrinação. Mesmo sendo um cristão, um português do
século XVI, o narrador-personagem dirige a sua crítica contundente à moral do
proveito. Ao tempo em que o exemplo dado pelo outro desnuda os vícios que
condimentam a ética cristã de então, a possibilidade do proveito justifica tais
vícios e estabelece o círculo imaginário de pecado e de expiação.
Por isso, o
depoimento mordaz e irrespondível contido nas situações e diálogos da Peregrinação.
Enquanto tantas outras narrativas de viagem dão relevo à estranheza do outro,
sem que isso implique o desnudamento dos vícios do conquistador, essa obra
vale-se do confronto para sublinhar o que está em desacordo com o bom senso não
apenas no outro mas, principalmente, no mesmo – isto é, no cristão, no europeu,
no português.
É verdade
que o sujeito que conta as desaventuras assume o discurso do cristão português
lançado aos mares temperados pela defesa da fé. É verdade também que a ambição
é justificada pela legitimidade do proveito decorrente das missões destinadas a
expandir as fronteiras da cristandade. E que toda conquista unia a espada à
cruz.
Mas o
narrador não oculta nem minimiza os fatos que contradizem os piedosos e frágeis
propósitos. A cobiça, o desrespeito, o desamor e a deslealdade são evidenciados
na sua ação e na dos seus companheiros, em flagrante contraste com a boa fé do
outro. O outro, quase sempre, é pretexto para corrigir os costumes do mesmo.
Quando, em
1726, Jonathan Swift, em Gulliver’s travels, se vale dos manuscritos que
lhe foram confiados por um incerto Sr. Lemuel Gulliver para colocar a nu, para
desvestir a máscara que cobria os gestos insensatos dos seus concidadãos, ele
estaria retomando uma estratégia já usada na Peregrinação de sublinhar
as virtudes do outro como forma de evidenciar os próprios defeitos.
A presença
de um capitão português, Dom Pedro de Mendes, fechando as viagens de Gulliver –
e, graças ao entendimento e aos modos desse capitão Mendes, reconduzindo Lemuel
Gulliver à convivência dos homens – seria um indício de que Swift teria lido a Peregrinação
como uma sátira e uma crítica aos vícios da cristandade. O próprio Jana-than
Swift, doutor em Teologia, tornou-se cônego para não viver na miséria, e
depois, deão da Catedral de São Patrício, na Irlanda, não obstante tenha
dedicado uma das suas obras ao ataque frontal ao desregramento da vida
religiosa.
Partindo de
quem não via com generosidade a espécie humana, a referência generosa a esse
capitão Mendes, feita por Swift, seria uma simples coincidência, ou fruto da
identidade entre dois autores?
Um, no
século XVI, partindo de uma narrativa de viagem real para chegar à ficção, como
de fato chegou, e outro, no século XVIII, valendo-se da ficção para criar a
realidade de um verossímil viajante inglês.
Curioso
ainda é o temor que Gulliver manifesta à Inquisição, quando da sua estadia em
Lisboa. Essa emblemática presença do capitão Mendes no desfecho das viagens do
capitão Gulliver sugere o tráfico de idéias comuns. Sugere mais ainda:
analogamente, o possível risco que o autor-personagem da Peregrinação
corria perante a Inquisição portuguesa; risco aqui traduzido no temor de Lemuel
Gulliver.
De volta ao
texto de Fernão Mendes Pinto, observe-se que o episódio ocorrido em Formosa,
então conhecida como Ilha dos Léquios, mostra como os portugueses, acusados e
tornados prisioneiros, são tratados com respeito por aqueles que o irão julgar.
O governador inicia o interrogatório pedindo desculpas pela sua obrigação de
levar o processo adiante e, movido pela compaixão, afirma que preferia estar no
lugar dos prisioneiros. O interrogatório, feito por aqueles que – conforme a
ótica cristã – desconhecem a palavra divina, é uma eloquente lição de humildade
e de sentimento cristão. A miséria dos prisioneiros portugueses compadece de
tal modo os léquios que foram recolhidas esmolas suficientes que torná-los
providos “de todo o necessario em tanta abastança, que não ouue nenhum de
nós que não trouxesse de cem cruzados para cima”. (Pinto, 1614, p. 131)
Libertados
com generosidade e tratados como amigos, o narrador e seus companheiros opõem a
fidalguia dos léquios, desvalidos da palavra de Cristo, à vilania dos
portugueses, piedosos cristãos:
“Desta breue informação que tenho dado destes
Lequios se pode enteder, & assi o cuydo eu pelo que vy, que com quaisquer
dous mil homes se tomara e senhoreara esta ilha com todas as mais destes
acipelagos, donde resultara muyto mayor proueito q o que se tira da India.
(Pinto, 1614, p. 223)
A oposição
gritante entre o espírito elevado dos léquios e a astuta mesquinharia dos
cristãos não pode ser casual. Ao por na boca do narrador falas aparentemente
“inocentes” que denunciam a mais absoluta ausência de ética, Mendes Pinto quer,
de fato, se valer da ironia para criticar a moral da sua gente. A mesma moral
que lhe constitui como sujeito e lhe contamina. Daí, a ambivalência.
Ao pintar o
quadro com tintas carregadas e finalizar a pintura louvando a Deus pelo
ocorrido, quando o ocorrido desafia a bondade divina, não estaria Mendes Pinto
satirizando?
Para
Francisco Ferreira de Lima, um dos mais abalizados representantes dessa nova
corrente de releitura da Peregrinação, a frequência com que o narrador
apela a “Cristo”, a “Jesus”, a “Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao “filho de Deus
que morreu na Cruz” neutraliza a presença de ironia. Seu argumente parte do
pressuposto segundo o qual, sendo um bom cristão, o autor não assumiria um
discurso de arremedo dos cacoetes da sua época. (Lima, 1988, p. 89)
Pode-se, contrariamente, afirmar que tal frequência, inclusive nas
situações mais absurdas e descabidas, confirma a ironia. A repetição, a
constância, a recorrência, a redundância é uma forma de caricatura. E a
caricatura do procedimento do cristão português realça suas contradições e dá
sustentação à ironia.
É evidente que Mendes Pinto – quer seja cristão novo, ou não – incorpora
a ética cristã do proveito; mas o seu texto é um contundente libelo contra essa
mesma ética.
O que se vê nas viagens, ou se imagina e inventa, tem por fim criticar e
tentar melhorar a realidade do mundo português, do mundo cristão. Assim, as
virtudes dos gentios – percebidas até mesmo por um protagonista que se pinta
como tão insensível quanto aqueles a quem critica – as virtudes dos gentios
são, em si mesmas, uma crítica ao comportamento europeu. Obviamente, a crítica
é ao mau cristão, ou seja, como convém emendar: a todos os portugueses da época
que empreenderam a aventura da conquista. Restringir a crítica seria crer que o
universo dos criticáveis também fosse restrito.
Há uma passagem na Peregrinação onde o pretexto seria a crítica à
religião do outro. Vejamos: “Desta sua cegueyra & incredulidade lhe nacen
os grandes desatinos, & a grande confusão de superstições que tem entre
sy”. Façamos um corte e vejamos outra passagem do texto, mais adiante, onde
entre tais desatinos e superstições destacam-se as – usemos uma expressão em
alta – propinas “que dão aos seus sacerdotes, porque [ou: para que estes] lhes
segurem grandes bees nesta vida, & na outra riquezas de ouro infinitas, os
quais sacerdotes lhe dão para isso huus escritos como letras de cambio.” (Pinto, 1614, p. 251)
A
coincidência com os hábitos cristãos e, especialmente, com a venda de
indulgência pela igreja de Roma impõe ao leitor alguma reflexão em torno da
ironia.
Há, de
fato, um parentesco entre a escritura de Fernão Mendes Pinto e a de Jonathan
Swift. Esse último, mesmo vivendo da atividade religiosa, não deixa de ver as
mazelas da sua grei.
Dizer que a
Peregrinação está em perfeita sintonia com o cristianismo do século XVI,
como querem alguns estudiosos (revisionistas), é reduzir essa escrita
literária, polissêmica e aberta à atualização do possível leitor de qualquer
tempo, a mera condição de um “diário de bordo”.
Conforme se
sabe, o texto de Mendes Pinto foi escrito muitos anos depois das suas viagens,
não obstante o relato, rico em pormenores e sugestivo de emoções recém-vividas,
dê a impressão que muitas passagens foram escritas ao calor dos acontecimentos.
Esse poder de sugestão é típico do texto literário, onde a ficcionalidade
constrói os detalhes, onde a realidade do sujeito preenche o vazio – ou a
ausência – da realidade objetiva.
Mas se a Peregrinação
não contém “cousa algua contra a nossa santa Fé”, conforme a leitura do censor
do Santo Ofício – esse sim perfeitamente integrado ao sistema de valores do
cristianismo do século XVI e incapaz, portanto, de ler as evidências dos fatos
–, se a Peregrinação não contém nada contra as convicções e os
interesses ditos cristãos, por que Mendes Pinto temia? Se é que temia. O temor,
em tais circunstâncias sugere que se veja mais do que o censor alcançava – ao
ver.
Quando os
valores religiosos entram em cena na Peregrinação, o narrador-personagem
procura se manter imune ao encantamento e à sedução do desconhecido. Nessas
circunstâncias, o ouvidor atento não ouve, o voyer contumaz não vê.
Para fugir
ao rigor da censura ou ao sistema de terror instaurado pela Igreja, o texto da Peregrinação
assume o discurso piedoso mais absurdo, justificando todas as atrocidades em
nome de Cristo, do mesmo modo que faziam os inquisidores. Dessa forma, o
narrador cerca-se de cacoetes clericais, usando o nome de Deus a toda hora e
evitando críticas diretas aos hábitos portugueses.
São as evidências e os fatos objetivados que substituem a crítica
aparente, como faz, na atualidade, o chamado jornalismo objetivo. Mesmo sem
comentar a notícia, a mídia seleciona fatos que conduzem o leitor a um
determinado posicionamento. O jornalismo ‘objetivo’ apenas edita o dito.
A crítica velada, disfarçada pela cuidadosa escolha dos episódios
mostrados, tanto é usada nos nossos dias quanto foi experimentada no século XVI
por Fernão Mendes Pinto. Afinal de contas, é a arte, a literatura, que descobre
novos modos de dizer o indizível, ou aquilo que não pode ser dito.
Quando a crítica aparece na Peregrinação, ela é alegorizada em
forma de crítica ao outro, ao gentio. Ou aparece em forma de louvor ao contrassenso,
quando depois de roubar pessoas indefesas, os portugueses agradecem à graça de
Deus, pela proteção.
É a exposição crua dos fatos, vistos sem constrangimento, e contrapostos
às piedosas expressões de beatice, que funciona como crítica; uma crítica que
não aparece nas palavras do texto mas eclode no ato da leitura.
Excluída a possível natureza contestatória do livro, como querem os revisionistas,
continuaria inexplicado o longo tempo decorrido entre a finalização do texto e
sua impressão. Somente vinte anos depois da morte do autor a obra veio a lume.
O temor de Mendes Pinto à repercussão da sua obra ganha sentido a partir
daí, da sua consciência crítica, consciência dos recursos usados pela sua
escritura. Lida a Peregrinação como um canto de louvor sincero ao
cristianismo do século XVI, o autor não teria motivos de temor ao Santo Ofício.
Mas ele temia; é o que os fatos indicam. Desta forma, a presença da ironia, da
avaliação judicativa, ou mesmo da paródia como forma de crítica ao parodiado,
continua como proposta sustentável. E fascinante.
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