![]() |
|
![]() |
a |
![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
. EUCLIDES NETO: UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS Quando o menino Euclides Neto começou a ler
os primeiros livros, o realismo social dos regionalistas de 1930 dava as
contribuições mais frutíferas à literatura brasileira, levando suas
conseqüências até Portugal, com o Neo-Realismo. De um lado, a densidade de alguns escritores,
do outro, o honesto engajamento com o homem e sua realidade abriram novos
caminhos para a criação literária, onde a solidariedade e o humanismo se
confundiam com os projetos estéticos. É dentro desse quadro que o cronista e
ficcionista Euclides Neto continua pintando suas paisagens e retratando o que
viu e viveu. É essa mesma solidariedade com implicações políticas ou religiosas
que marca de modo indelével, aqui com implicações de uma ideologia humanista, a
escrita desse homem da terra. Os Magros é um romance da juventude do autor, agora
reeditado como forma de reafirmar a sua perfeita sintonia com a obra da
maturidade. O velho Euclides Neto, ex-prefeito de Ipiaú, onde desenvolveu um
modelo planejado de reforma agrária, ex-secretário de Estado, onde queria fazer
bem mais, continua sendo o mesmo escritor solidário ao homem, como nos tempos
das auroras puras. Seu texto tem um objetivo maior: dar voz a todos aqueles que
foram sufocados pelas injustiças sociais. Mas não se trata apenas de um discurso bem
intencionado. Muitos existem. Trata-se de um discurso literário situado e
datado. Situado na zona cacaueira da Bahia. Datado da primeira metade do
século, quando a cultura do cacau atingiu o seu esplendor. Mas, desafiando o calendário, o discurso engajado
de Euclides Neto continua abrindo espaço nestes anos de fim de século, quando o
esplendor do ciclo do cacau foi inócuo para atenuar a pobreza e a miséria de
muitos que, com suas mãos, construíram toda aquela riqueza. *
* * Contam que o poeta Manuel Bandeira perguntou
uma vez a Adonias Filho: — O que o sul da Bahia produz, além do cacau? — Produz escritores, respondeu Adonias. O cacau foi destruído pela praga e a riqueza
pela falta de visão daqueles que pensavam que o ouro é um bem eterno. Mas os
escritores, estes sim, ficaram e são hoje o patrimônio maior da nação grapiúna.
Sosígenes Costa, Jorge Amado, Florisvaldo Matos, Ildásio Tavares, Adonias
Filho, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, Euclides Neto e tantos e tantos
mais que convém não tentar citar a todos, porque muitos seriam esquecidos. *
* * É do fato de ser situado e datado que nascem
as virtudes e os defeitos de Os
Magros. As conquistas formais de Graciliano Ramos, o grande construtor e o
surpreendente estilista de magreza dessa geração, deixaram, sem dúvidas, marcas
na escrita de Euclides Neto. Algumas indesejáveis e desnecessárias, que ressoam
como ecos inúteis. A cadela dessa família de vidas magras do romance euclidiano
não tem nome de peixe, mas se chama Sereia. A proximidade eufônica e marinha
com Baleia cria no leitor preconceituoso a expectativa de um pastiche. Mas Os
Magros não tem nada de
pastiche ou imitação simplória. É obra autônoma que testemunha o engajamento da
escrita de um homem comprometido com sua terra e, principalmente, com a gente
que vive nela. É verdade que Euclides Neto constrói seu
romance observando alguns pontos de identidade com Vidas Secas. Dialogando com
essa obra, ampliando suas conquistas. E isto confere atualidade e interesse ao
romance agora reeditado. A viagem intertextual de Os Magros sugere inúmeras abordagens e reclama a
atenção da crítica acadêmica, universitária, para o texto euclidiano. Aliás, já é tempo das pesquisas de
pós-graduação na Bahia, com suas dissertações e teses, se voltarem para a
produção da comunidade na qual está inserida. Naturalmente, não se chega longe
trabalhando os autores mais jovens, cujas obras ainda não percorreram a
implacável circularidade imposta pelo tempo, mas é preciso estudar aqueles que
se inscreveram num momento da história literária que já pode ser contemplado
com o necessário distanciamento crítico. Ler esse romance de Euclides Neto implica em
reler e compreender a recepção do realismo social trazido pelo romance de 30.
Já podemos observar quando a simples imitação se transforma em diálogo
intertextual destinado a levar adiante uma conquista, a reforçar um projeto
ideológico ou estético. Duas narrativas paralelas constroem a textura
romanesca de Os Magros. A
primeira, erigida à condição de eixo da obra, é a dos magros trabalhadores de
aluguel numa roça de cacau. A outra, a dos gordos proprietários, entra como
contraponto, numa regularidade empobrecedora. Ao retomar o livro nessa nova
edição o autor poderia ter revisto o caráter mecânico do contraponto. A
narrativa, de um capítulo para outro, alterna o cenário da magreza rural com a
entediante fartura urbana dos donos de terras e gentes. A previsibilidade é um
elemento empobrecedor. Mesmo quando tem pouco a dizer, o autor impõe uma
pequena narrativa contrapontística, criando uma monótona regularidade. Quebrar
um pouco a mecânica regular desse contraponto daria mais ritmo ao livro. É esse contraponto que – ao contrário do que
acontece em Vidas secas,
onde os contos em torno de uma mesma família se encadeiam formando uma novela –
propõe a estrutura do romance. No livro de Euclides Neto as duas narrativas
distintas se escrevem como linhas cruzadas, mas também, como na obra de
Graciliano, alguns capítulos funcionam como contos autônomos. Alguns
verdadeiros momentos de elevada escrita, como o capítulo XIII, onde após a
morte de um dos filhos de João, o gerente da fazenda persegue os meninos pelo
mato. Página autônoma e antológica, um dos momentos altos do livro. Voltando aos pontos críticos, a oposição
entre a miséria dos magros protagonistas e a opulência dos senhores da terra
parece demasiadamente esquemática, conservando aí uma ingenuidade analógica à
das primeiras obras de um Jorge Amado, por exemplo, que nos romances da
juventude via todos os pobres como bons e todos os ricos como maus. Tanto que
Jorge revê essa forma de maniqueísmo nos romances da maturidade, por isso,
talvez, chamados de romances burgueses pelos patrulheiros linha dura, aos quais
o velho Engels diria que falta dialética. Quando Euclides Neto opõe a miséria do
casebre em que vivem as nove pessoas da família de João à fartura do “palacete”
em que a fazendeira mora praticamente sozinha, o impacto do contraste é
quebrado pelo excesso de tintas que pintam a riqueza com um realismo ingênuo.
Isto ocorre no segundo capítulo do livro, no qual a casa do Doutor Jorge é
chamada de palacete e suas excelências são acintosamente
decantadas. O efeito seria melhor, se o contraste fosse mais discretamente
mostrado. Claro que isso agrada aos antigos comunistas de carteirinha, mas foi
por isso mesmo que nos anos do patrulhamento stalinista o bom texto se afastou
do Partidão. Estas marcas do realismo socialista tornam o
livro demasiadamente datado, para alguns leitores, especialmente aqueles que
apreciam a capacidade de um escritor de rever as suas obras ano após ano. É o
que fazia, por exemplo, Miguel Torga, autor admirado por Euclides Neto. Poucos
dias antes de morrer, Torga revia a vigésima edição de um dos seus livros de
contos, apagando deles as marcas demasiadamente circunstanciais. Tal desprendimento faria de Os Magros um livro bem mais vivo e permanente
porque, não tenhamos dúvida, trata-se de uma obra que deve ser lida e conhecida
por milhares de leitores, permitindo o livre soar dessas vozes sufocadas que,
ouvidas, ajudariam as pessoas a passar muitas coisas a limpo. AS FONTES POPULARES A narrativa de Euclides Neto é tributária
direta das fontes populares rurais, notadamente da região sul da Bahia, marcada
pela opulência e pela miséria das roças de cacau. Esse singular escritor baiano
nasceu nos heróicos anos de bravatas e astúcias desbravadoras do modernismo
brasileiro e morreu em abril do último ano do século passado, sem viver as
esperanças do novo milênio. Escritor ilustrado nos bancos e páginas da
academia, com pleno domínio do registro padrão da língua culta, Euclides Neto
optou por um projeto de incorporação das formas, substâncias, conteúdos e
expressões populares ao seleto clube da literatura culta. Recusando-se utilizar as fontes populares como signos do exótico e do pitoresco, mas se valendo de tal riqueza como ampliação dos estreitos corredores da fabulação erudita, esse singular narrador conseguiu atingir o domínio pleno da arte da escrita inventiva no seu derradeiro livro: O tempo é chegado, publicado postumamente, em 2001, pela Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, com o selo da Editus. Os narradores perdidos no interior do tempo-espaço, ou guardados e defendidos,
preservados, portanto, nas dobras e nos lugares ocultados de cada cultura,
destilam o sabor e o saber da narrativa primordial. Euclides – Neto e avô de
saberes narrados, não obstante as leituras modernas e contemporâneas que o
tornaram um profissional cultivado nos moldes da academia – retornou à fonte
primitiva, perdida no interior da terra e do homem, para beber o elixir da
linguagem esquecida. Nesta fonte da eterna juventude dos povos, o
narrador apenas conta e transmite experiências, saberes ou mesmo dissabores. O narrador moderno e contemporâneo profana a
história contada, junta o mito à imagem de novos deuses da razão, isto é, casa
o conto, ou o astuciado, com a sua explicação. Já o narrador primordial,
apenas, narra – porque tudo é novo, misterioso e inexplicável. A narrativa literária que a modernidade nos
legou é marcada pela sanção da lógica que a tudo explica. O escritor dos nossos
dias conta uma história que já contém em si mesma uma explicação dos fatos
narrados; ou, muitas vezes, a explicação dos fatos, que nos é sugerida,
constitui o desdobramento ou o desenlace da narração. A explicação e a
compreensão confundem-se e transmutam-se na própria narrativa. Portanto, nada
mais distante do mito do que esse tipo de narrativa engendrado pela razão
crítica. Daí o fato da tradição moderna destacar, desde o século XIX, um tipo
de narrativa como pertencente ao gênero fantástico. Opondo-se à idéia de
realismo literário, surgiu a noção de realismo-fantástico, porque o fato
narrado que não contém sua própria explicação ultrapassa os umbrais da
realidade narrativa. Euclides Neto faz o narrador das suas
histórias recuar ao tempo do mito, onde o que se conta não precisa de outra
legitimação além do próprio contar. Onde História e Literatura, hoje dois
saberes distintos, eram uma só narrativa. Os velhos cronistas foram os pais dos
novos historiógrafos, gerando tais filhos quando esposaram uma virgem então
inacessível: a compreensão do fato narrado. No vórtice dessa viagem, unindo tempos
antagônicos, Euclides Neto constrói o poder de sedução da sua escrita, chegando
ao magma, à lava, ao cristal das histórias reunidas no livro O tempo é chegado. Esta multitemporalidade que pode se converter
em atemporalidade, faz as narrativas de Euclides Neto resvalarem para o
estranhamento, para um espaço insólito ou uma terra de ninguém, evocando em
alguns contos do autor a reminiscência de algo que está desaparecendo.
Benjamin, no livro Magia e
técnica, arte e política,
ao estudar as características do narrador na obra
de Nikolai Leskov, observa que as características orais da arte
de narrar estão
em processo de extinção, porque a sabedoria –
“o lado épico da verdade” – não
encontra espaço numa sociedade marcada pelo desaparecimento das
relações
interpessoais construídas no trabalho, nas atividades e
ofícios em que a troca
de experiências constituía a produtividade. Para Walter
Benjamin, “esse
processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso
vivo e ao
mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo,
tem se desenvolvido
concomitantemente com toda uma evolução secular de
forças produtivas.”
(Benjamin, 1987, p. 201) Podem-se evocar algumas idéias desse pensador
da escola de Frankfort, a propósito da ficção de Euclides Neto e da sua busca
de caminhos na esfera do romance, para achá-los, depois, na prática do conto,
quando realiza a maturidade da sua arte de narrar. Benjamin observa que a
tradição oral, que é característica da poesia épica, tem uma natureza
fundamentalmente diversa de tudo aquilo que viria a definir o romance como
forma literária. As formas narrativas que aspiram romper com a tradição da
cultura ágrafa se afastam da tradição oral, dos contos de fada e das lendas,
buscando novos saberes na transmissão escrita da ciência. Por outro lado, há
formas narrativas menos preocupadas com a compreensão do admirável mundo novo e
mais comprometidas com a transmissão da velha e renovada experiência adquirida
no dia a dia das pessoas. Aqui se fala, particularmente, do conto de Euclides
Neto. O narrador primordial retira da própria experiência ou da experiência
relatada por outras pessoas as coisas que são incorporadas à sua história. No panorama do conto brasileiro do século XX,
Euclides Neto configura os traços do narrador benjaminiano; como alguém que vem
de longe e conta aos seus ouvintes a experiência e a sabedoria trazidas de
lugares mágicos, porque defendidos pelas brumas do desconhecido. Essa distância
configurada no saber no narrador é, segundo Benjamin (p. 202), o longe espacial
das terras estranhas e o longe temporal contido na tradição. Para o filósofo neo-hegeliano, somos pobres
em histórias surpreendentes mesmo quando somos torpedeados por notícias de
todos os cantos do mundo, porque os fatos que constituem as notícias já chegam
acompanhados de explicações. Benjamin entende que a maior parte do que é
veiculado está a serviço da informação, em detrimento da narração; e afirma
textualmente: “Metade da arte narrativa está em evitar explicações.” (p. 203) É essa ausência de intervenção da lógica e do
pensamento explicativo que assegura a permanência, na memória do leitor, tanto
das antigas narrativas históricas, construídas pelos cronistas e escrivões
reais, quanto do conto, de ontem ou de hoje, fundado em tais bases estruturais. Para elucidar o raciocínio aqui desenvolvido
a propósito dos contos de Euclides Neto e do seu lugar no quadro da literatura
brasileira do século XX, vejamos o que diz o pensador da escola de Frankfort: “Cada vez que se pretende estudar uma certa
forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia.
Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona
de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. Nesse caso, a
história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as
cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a crônica é
aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais
incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma
história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma
cor. O cronista é o narrador da história. Pense-se no trecho de Hebel, citado
acima, cujo tom é claramente o da crônica, e notar-se-á facilmente a diferença
entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o cronista. O
historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que
lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da
história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através dos
seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da
historiografia moderna. Na base de sua historiografia está o plano da salvação,
de origem divina, indevassável em seus desígnios, e com isso desde o início se
libertaram do ônus da explicação verificável.” (Benjamin, 1987: 209) Herdeiro dessa forma narrativa, pela via da
tradição oral que também a alimentou, Euclides Neto substitui a explicação
plausível pela lógica da fábula, identificando a estrutura do seu texto com a
do texto do mito. A narrativa mítica não precisa explicar aquilo que narra pois
ela mesma já é uma explicação para o que ainda não se explica. Autor de ensaios, crônicas e romances,
Euclides Neto iniciou-se nas artesanias da escrita com a geração emblemática de
45, marcada pela fusão do veio telúrico dos anos 30 com os tumultos de um mundo
novo que se refazia. Ao longo de doze livros publicados em vida, o escritor
desenha a cartografia de um percurso e as perdas e ganhos de um percalço, para
deixar como herança da sua obra de escritor multiface, polígrafo, um livro
póstumo que é uma espiral
parabólica no panorama da
nossa literatura. Utilizo a expressão espiral parabólica no sentido de lugar geométrico: plano
de um ponto que se move com velocidade constante ao longo de uma reta; girando,
por sua vez, com movimento uniformemente acelerado em torno de um ponto
fixo. Simples e complexa, ingênua e maliciosa,
divertida e cismada, dissoluta e contrita, ilusória e densa são adjetivos que
escorrem, numa cascata cambiante de oxímoros, a dialogar entre si no faz de
conta da prosa maneira de Euclides Neto. Ora aceitando os desafios da escrita
literária do seu tempo, ora recuperando o pensamento silvestre que escorre num
dedo de prosa matuta, o texto narrativo de Euclides Neto contempla a
re-apropriação do pensamento selvagem, no sentido proposto por Lévi-Strauss. O
contista de O tempo é chegado transita com desembaraço entre espaços
marcados pela incompatibilidade, promovendo a alquimia da criação artística que
transmuta a dureza dos metais na ductilidade do difuso. Os contos reunidos nesse livro de guardados,
achados e perdidos, chegam sorrateiros, como o matuto que pede licença para
entrar nas casas da cidade, com gestos silenciosos e humildes. Mas sua entrada,
não obstante a suavidade matreira, é acompanhada por uma luminosa inquietação.
O gosto e o saber estabelecidos são delicadamente postos em suspenso no curso
de um astuciado que nos leva de volta a lugares descolonizados pelo pensamento
selvagem. A ingênua simplicidade dos contos de fadas
estão a serviço de uma dicção culta, ampliada pela experiência do homem e da
mulher que vivenciam uma outra cultura, subterrânea e subjacente como um lençol
freático a dessedentar os exaustos caminhantes de
uma seara massificada e exaurida por um vendaval de informações. Euclides Neto e Cid Seixas, em lançamento do
livro do segundo
O espelho infiel, 1996. EUCLIDES NETO E A DECADÊNCIA DO
CICLO DO CACAU O livro do escritor e jornalista Elieser
Cesar O romance dos Excluídos:
terra e política em Euclides Neto nasce
como um estudo essencial para a compreensão de um segundo momento da ficção
grapiúna. Se Jorge Amado e Adonias Filho, para vislumbrarmos dois marcos de
altitude relevante na literatura brasileira – um da geração de 30 e o outro da
geração de 45 –, constroem o inventário épico da fundação de uma nova cultura
de léguas prometidas nas terras do sem fim, Euclides Neto fixa a sua obra no
momento de apogeu e prenúncio da decadência dessa mesma cultura do cacau. Elieser Cesar observa que Euclides Neto retoma
a saga da região do cacau onde Jorge Amado parou: na consolidação da lavoura
cacaueira e do seu processo civilizatório. Embora o leitor polêmico possa
discordar dessa afirmativa, quando feita de modo peremptório, lembrando que o
próprio Jorge Amado já propõe o desdobramento da sua saga, focando a
substituição dos desbravadores pelos herdeiros, a afirmação de Elieser Cesar
não cai no vazio, pois é com Euclides Neto, contemporâneo e protagonista
desse segundo ciclo, que o foco se desloca dos momentos heróicos para os
momentos da simples e pura exploração do trabalho dos homens e mulheres de
eito. Os novos “coronéis da cidade” vivem exclusivamente do usufruto de uma
terra por outros lavrada. Na monumental síntese do chamado ciclo do
cacau, por ele mesmo construído, Amado não se limita em Tocaia Grande – a face obscura a
percorrer os velhos caminhos da sua
ficção. Ele se reapropria dos seus temas e tipos para
anunciar o processo de
degeneração dos heróis trágicos da
epopéia grapiúna em bufões de uma
tragicomédia
macabra. É o que ocorre claramente na construção
de uma personagem caricata e
metonímica como o bacharel Venturinha, novo coronel de gabinete;
em tudo
antagônico à figura emblemática do
ex-jagunço Natário da Fonseca, investido das
funções de capitão descobridor e fundador de
Tocaia Grade, uma nova Canudos
nascida do sonho dos excluídos. Se o capitão Pedro Álvares Cabral funda, nas
mesmas terras do sul da Bahia, uma nação para uso e proveito del-Rei, o capitão
Natário da Fonseca intenta fazer ressurgir uma outra Canudos, uma cidadela
também sitiada e exterminada, até mesmo no nome. Entre Tocaia Grande, reduto de
bravos, e Irisópolis, metonímia de uma nação corrompida, se interpõe a face
obscura. Convém observar que esse livro da maturidade
de Jorge Amado, publicado nos anos oitenta, é posterior à vertente do trabalho
de Euclides Neto, iniciada com Os
Magros, de 1961. Consideradas as datas, podemos repetir a afirmação de
Elieser Cesar, segundo a qual Euclides Neto retoma a saga onde Jorge Amado
parou. “Em Euclides Neto não vemos mais a expansão e
a cristalização do poder dos coronéis. Em seus livros não temos mais a ligação
telúrica do proprietário com o solo da promissão e do lucro. A fazenda é, em
geral, o meio pelo qual o proprietário vive de rendas. Diríamos que esse escritor enceta a história
da decadência das terras do cacau, iniciada quando o proprietário, herdeiro do
antigo coronel, já não vive na fazenda, mas em Salvador, numa luxuosa mansão e
entrega todos os cuidados da roça ao capataz, aguardando apenas a remessa dos
lucros para sua conta bancária.” (Cesar, 2003, p. 12.) Para traçar a analogia a partir de fraturas
entre o fulcro do conjunto das obras de Jorge Amado sobre a região do cacau e o
cerne dos romances de Euclides Neto que constituem a “tetralogia dos
excluídos”, o estudioso parte da identidade entre os dois romancistas: a luta
de classes nas terras do cacau. Nesse percurso de aproximação, o livro está
centrado nos romances Os
Magros, de 1961, O Patrão,
de 1978, Machombongo, de 1986,
e A enxada, de 1996,
enquanto integrantes do painel caracterizado por Elieser Cesar como uma
tetralogia dos excluídos. Para a compreensão do texto de Euclides Neto
enquanto retomada dos modelos da literatura comprometida com o realismo e a
raiz telúrica dos anos 30, o autor recua ao romance social do século XIX,
traçando um painel sumário de um século: 1830-1930. Em seguida, como antecessor
imediato da eclosão da tetralogia de Euclides Neto, Cesar vai buscar os
fundamentos e ensinamentos marxistas postos em prática na coleção Romance do
Povo, dirigida por Jorge Amado e publicada pela Editorial Vitória, de 1953 a
1955, incluindo vinte obras tomadas como arquétipos do realismo socialista. “Impulsionada pelos propagandistas do regime
soviético, em várias partes do mundo, a discussão sobre o realismo socialista
granjeou defensores fora da URSS, conquistando a simpatia das democracias
populares e dos partidos comunistas dos países capitalistas. A partir de 1948,
inflamou também os escritores brasileiros, sobretudo aqueles ligados ao Partido
Comunista Brasileiro”. (Cesar, 2003, p. 43.) Autor de ensaios, crônicas e romances,
Euclides Neto se iniciou nas artesanias da escrita com a geração emblemática de
45, marcada pela fusão do veio telúrico dos anos 30 com os tumultos e as
exigências de um mundo novo que se refazia. (Cf. Seixas, 2002, p. 4.) Convém
reafirmar, portanto, que Euclides Neto pertence, cronologicamente, à geração
literária de 45: tendo nascido em 1925, publica dois romances da juventude que
precedem Os Magros – Berimbau,
em 1946 e Vidas Mortas, em
1947. Desse modo, o homem e o escritor vivem as inquietações ideológicas comuns
aos jovens dos anos 40 e 50, inquietações estas que irão refletir as
preocupações de um Brasil marcado por golpes, tentativas de golpes e governos
instáveis, dos anos 30 aos 60, quando ele inicia a sua tetralogia, um pouco
antes de se abater sobre o país a longa ditadura militar de 64. O tom inflamado
que, às vezes, parece ecoar, ingenuamente, as obras de Jorge Amado e de Graciliano
Ramos, representa uma tentativa de responder, nos anos 60, aos mesmos problemas
sociais que atravessam incólumes a primeira metade do século. “Publicado em 1961, Os Magros é, do ponto de vista estilístico, o
mais ousado livro de Euclides Neto. Escrito com a técnica do contraponto, o
romance é a história de duas famílias opostas em tudo e diferenciadas pela
miséria e pela opulência. Novamente encontramos o leitmotiv da obra do escritor grapiúna: a luta
de classes nas terras do cacau da Bahia. Em Os
Magros podemos identificar um diálogo intertextual com dois outros
romances da literatura brasileira, ambos representantes da temática social
nordestina dos anos 30: Cacau,
de Jorge Amado, e Vidas Secas,
de Graciliano Ramos.” (Cesar, 2003, p. 81.) Se o romance Os Magros é considerado por Elieser Cesar como o
livro de Euclides Neto mais ambicioso na sua estrutura literária, Machombongo ocupa idêntico lugar no que diz
respeito à concepção política. Resgatando do esquecimento os anos de chumbo do
regime militar e a heróica resistência de alguns brasileiros mais ousados, o
romancista se vale de personagens reais, como o deputado Haroldo Lima, e de
personagens fictícios, como o coronel Rogaciano Boca Rica, para fixar o painel
das grandezas de poucos e das misérias de muitos, sob as botas dos
generais-presidentes. Na fixação do contexto social em que surge o
primeiro romance da tetralogia dos excluídos, Elieser Cesar remete o leitor
para o final dos anos 50 e o início dos anos 60, quando os ideais nacionalistas
e de esquerda entravam em choque, no plano continental, com o imperialismo e as
garras das águias norte-americanas e, no plano nacional, com fome no campo,
gerada pelo latifúndio improdutivo. Curiosa é a relação feita entre Os Magros e um romance publicado no ano
anterior: Irmão Joazeiro,
de Francisco Julião (1960). Pouca gente sabe que o conhecido deputado e líder
das Ligas Camponesas também se valeu da literatura como arma de combate
político e social. É possível que o romance de Julião não tenha chegado ao
conhecimento de Euclides Neto, mas as lutas dos trabalhadores rurais, bem como
a criação da Sociedade Agrícola dos Trabalhadores de Pernambuco, núcleo da
organização camponesa que precedeu os atuais movimentos pela reforma agrária,
por certo não escaparam ao olhar atento do escritor grapiúna. No mesmo ano em que Euclides Neto publica Os Magros, ocorre a sua eleição
para prefeito de Ipiaú, culminando com a desapropriação de terras improdutivas
para a implantação de uma propriedade coletiva destinada a possibilitar a
agricultura de sobrevivência a centenas de trabalhadores rurais que alugavam
sua força e seu suor às grandes propriedades dessa região de monocultura. A
concretização da utopia do prefeito-escritor passou a ser conhecida como
Fazenda do Povo e, com o golpe de 1964, Euclides Neto foi arrancado do cargo
para o qual foi eleito e a sua mais importante obra de caráter social foi
destruída, por parecer aos militares e à lógica das baionetas uma iniciativa
comunista. Nesse livro, O romance dos Excluídos: terra e
política em Euclides Neto, Elieser Cesar considera o autor de O Patrão o nosso último escritor militante de
esquerda. Ao tempo em que empreende uma abordagem crítica da importante
tetralogia desse ficcionista baiano, não descuida de possibilitar ao leitor uma
contextualização indispensável à compreensão dos romances estudados. REFERÊNCIAS E
BIBLIOGRAFIA BENJAMIN,
Walter; HORKEIMER, Max; ADORNO, Theodor; HABERMAS, Jurgen. Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980, 346 p. BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte
e política. São Paulo,
Brasiliense, 1987. CESAR,
Elieser. O romance dos
excluídos: terra e política em Euclides Neto. Ilhéus, Editus, 2003. EUCLIDES
NETO. Porque o homem não veio
do macaco. Salvador, Edição do Autor, 1942. EUCLIDES
NETO. Berimbau. Salvador, Edição do Autor, 1946. EUCLIDES
NETO. Vida morta. Salvador, Edição do Autor, 1947. EUCLIDES
NETO. Os magros. Salvador, Edição do Autor, 1961. (2ª
ed., São Paulo, Guena & Bussius, 1992, 164 p.) EUCLIDES
NETO. O patrão. Salvador,
Edição do Autor, 1978. EUCLIDES
NETO. Comercinho do Poço
Fundo. Rio de Janeiro,
Antares, 1979, 185 p. EUCLIDES
NETO. Os genros. São Paulo, GRD, 1981, 132 p. EUCLIDES
NETO. 64: Um prefeito, a
revolução e os jumentos. Salvador,
Fator, 1983, 286 p. EUCLIDES
NETO. Machombongo. Itabuna, Letras, 1986, 216 p. EUCLIDES
NETO. Novos Contos da
Região Cacaueira. Brasília-
Itabuna, Horizonte Editora, 1987, 131 p. EUCLIDES
NETO. O menino traquino. São Paulo, Littera, 1994, 111 p. EUCLIDES
NETO. A enxada e a mulher que
venceu seu próprio destino. São
Paulo, Littera, 1996, 165 p. EUCLIDES
NETO. Dicionareco das roças de
cacau e arredores. Ilhéus,
Editus, 1997, 128 p. EUCLIDES
NETO. Trilhas da
reforma agrária. São Paulo,
Edição do autor, 1998, 211 p. EUCLIDES
NETO. O tempo é chegado;
contos. Ilhéus, Editus, 2001,
156 p. LEVI-STRAUSS,
Claude. O pensamento
selvagem. São Paulo,
Nacional, 1976, 330 p. SEIXAS,
Cid. Conversa de chifre enroscado. Artigo crítico sobre o livro Dicionareco das roças de cacau e
arredores, de Euclides Neto. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 2 fev. 98,
Caderno 2, p. 7. SEIXAS,
Cid. Vozes sufocadas (Sobre o romance de Euclides Neto). Salvador, A Tarde, 11 mar. 96, p. 7
(Coluna “Leitura Crítica”). Republicado em Triste Bahia, Oh! Quão
dessemelhante. Notas sobre a literatura na Bahia. Salvador, Secretaria de
Cultura e Turismo, 1996, 157-162. SEIXAS,
Cid. Dois momentos da obra de Euclides Neto. Seara (Salvador), Seabra, v. 1, n. 1, 2004.
Endereço: http://www.seara.uneb.br/ SEIXAS,
Cid. Triste Bahia. Oh! Quão
Dessemelhante. Notas sobre a literatura na Bahia, Salvador, Letras da
Bahia, 1996. SEIXAS,
Cid. Euclides Neto e as fontes
populares. Trabalho apresentado na mesa-redonda Literatura e realidade: do
local ao transnacional. In Simpósio Internacional Tempo, História e
Literatura. Feira de Santana, UEFS, 2002. Publicação
Original: “Vozes sufocadas”. Salvador, A Tarde, 11 mar. 96, p. 7 (Coluna
“Leitura Crítica”).
|
O site Linguagens foi planejado e executado pelo seu responsável. Emails: cidseixas@yahoo.com.br | cid@ufba.br |
| Abertura | Leitura Crítica | Ler Nossos E-Books | Livros Impressos | Cronologia de Publicações | Artigos | Sobre o Autor | Este site foi construído e disponibilizado no mês de outubro de 2016. |