CAEIRO E O LUGAR DE
FORA DA CULTURA
Cid Seixas
Enquanto
sujeito da cultura, Fernando Pessoa atribui a Alberto Caeiro a tarefa de
superar os limites do contrato social que legitima o simbólico, concebendo
aquele que seria, na sua ótica, “o único poeta da natureza”. Personagem nascido
nas folhas e cadernos guardados na arca, Caeiro habita o cimo do outeiro como
Guardador de Rebanhos e Mestre de uma outra humanidade, criada com a substância
do universos pessoano. O mesmo contexto de modernidade que produziu o processo
de criação poética de Fernando Pessoa levou Heidegger à célebre identificação
da linguagem como morada do ser.
Como então dar voz a um sábio que harmoniza o homem com a natureza
através da negação da língua e do simbólico? Como dar ouvidos à fala que se
nega a si mesma?
Caeiro é
um poeta que só poderia existir como ficção ou como heterônimo de um poeta
comprometido – “como um novelo enrolado por dentro” – com as teias da cultura.
Somente o envolvimento extenuante com o simbólico poderia dar consistência à
negação do simbólico contida nos poemas de Alberto Caeiro.
Tocando os
limites do aquém e do além, da falta e do excesso, o mestre de si mesmo é a
própria encarnação da essência da poesia: atingir a pureza ou a ingenuidade
primitiva através do ultrapasse do simbólico.
A aparição
de um poeta como Caeiro na densa floresta de símbolos do cosmo pessoano é como
uma tocha de fogo soprada pelo vento no canavial dos sentidos. Antes de ser o
mestre, Caeiro não seria o estraga-festa? – não fosse o meta-simbólico?
Compreendido
como negação da cultura e do simbólico, lugar de silêncio da linguagem, Caeiro
quebraria o encanto do mundo instaurado por Pessoa, revelando o seu non
sense, e propondo a inutilidade da própria escrita heteronímica. Assim
compreendido, o chamado Mestre não seria um poeta, mas uma contradição capaz de
provocar uma fenda na dialética da construção estruturada pelo projetista do
engenheiro Álvaro de Campos: um incerto senhor Fernando; Antônio, também;
nascido na atônita casa dos Nogueira Pessoa.
A estrutura
do conhecimento é levada à condição de tema nuclear da obra de Fernando Pessoa:
as mais diversas formas de conhecimento, desde a ciência à arte e ao mito,
constituem aspectos contemplados pelo pensamento pessoano, tecido pelo
confronto de universos que vão da pragmática tecnológica aos ensinamentos da
doutrina secreta. O mundo clássico e o moderno, a vida urbana e a rural, a
objetividade e a subjetividade, a descrença e a fé, o realismo aristotélico e o
idealismo platônico estão harmonicamente contidos no caos e no cosmo do texto
do poeta.
Longe de
constituir um conjunto unitário e orgânico, o pensamento de Fernando Pessoa
pode ser comparado a um sistema aberto, nos moldes propostos pela física.
Constelar e aberto, pode cambiar elementos com os seus subsistemas
constituintes, definindo-se pela tensão entre a unidade metafísica e a
diversidade orgânica.
A fragmentação, a fratura e o falso são as tônicas do verdadeiro. Síntese
exemplar da modernidade e desconstrutor que prenuncia a pós-modernidade,
Fernando Pessoa é essencialmente um intelectual da cultura, uma presa da
civilização, a se debater nas teias do simbólico.
Filósofos
e linguistas concordam com a inversão da crença segundo a qual somos nós que
falamos e dominamos a língua. Depositária da história e do momento, lugar de
encontro do individual e do coletivo, é a língua que nos fala e domina. Para
Wartburg, quando a criança aprende a falar, está também aprendendo a conhecer o
espírito objetivo depositado na língua. Toda vez que surge uma nova vida
humana, o espírito coletivo que vive na língua transforma e modela esse
indivíduo. Mesmo quando ele procura se expressar de modo pessoal, obedece aos
contornos das palavras postas à disposição dos membros da comunidade linguística
a que pertence.
*
* *
O
testamento poético de Alberto Caeiro — se assim posso rotular o poema sem
título identificado pelo verso inicial “Se depois de eu morrer, quiserem
escrever a minha biografia” — este testamento poético serve de apresentação e
de despedida do pastor de ideias:
Se depois de eu morrer, quiserem
escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas –
a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer
criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
[OP, 237]
Se o
homem, criação da cultura, constitui o seu mundo pela soma de experiências
cognitivas, sentimentos e desejos de obscuros objetos; o animal, criatura da
natureza, recebe um mundo já constituído, através dos sentidos da visão, da
audição, do olfato, do tato e do gosto.
Distanciado
da apreensão direta das coisas, o prisioneiro da cultura submete seus sentidos
e sua experiência primeira ao vento ancestral da razão: o pensamento simbólico.
Entre mim e o mundo que a natureza criou, um outro mundo se entrepõe: o mundo
da cultura, síntese de experiências coletivas e individuais anteriores, que
empresta suas fôrmas para que eu molde minha percepção.
O poeta,
como o menino, sente-se nascido, a cada momento, para a eterna novidade do
mundo. No texto poético, conhecer não é classificar, nem submeter o
desconhecido às categorias do já visto. A frase de Pedro Kilkerry aqui se
aplica: "Olhos novos para o novo".
Os olhos
precisam estar limpos da poeira do tempo para que possam verque 'as coisas são
reais e todas diferentes umas das outras'. Tal compreensão, segundo Caeiro, se dá com os olhos e não com o
pensamento, porque este tenderia a achá-las iguais. É a isso que se chama de olhar
inaugural, que o guardador de rebanhos soube tão bem redescobrir. Uma frase
contém toda plenitude de uma vida; a vida de Alberto Caeiro: "Vi como um
danado." O olhar seria o sentido maior; avesso do pensamento.
Nesta
poesia sem metáforas e sem figuras de pensamento que não sejam símiles –
comparações evidentes à primeira vista – o olhar não seria uma grande figura? A
metáfora maior, primordial, portanto?
Ver seria,
então, uma espécie de metáfora obsessiva do plácido Mestre da paz. E eu me
pergunto: seria possível tal turbilhão de pensamentos na voz do silêncio? Uma
poesia aparentemente primitiva e simples esconderia sua sedução imagística sob
o manto diáfano de um sistema metafórico?
Da
tranquila paisagem sem figuras, Caeiro tange seu rebanho de nuvens, como se
estivesse respondendo às indagações, sem nada responder – apontando noutra
direção o dedo do olhar:
O que nós vemos das coisas são as
coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
[OP, 217].
Neste
poema de "O guardador de rebanhos", a recusa de todo objeto vicário
ou de todo signo, entendido enquanto coisa que está em lugar de outra coisa,
implica, necessariamente, na recusa do pensamento simbólico: aquele que se dá
através da linguagem – a mais complexa formulação da ausência.
Traçando o
espaço do homem por entre as linhas dos cinco sentidos, Caeiro rejeita o sexto
sentido conquistado: o sentido simbólico, responsável pela apreensão da
ausência e pela sua conversão vicária. Na poesia do mestre, a presença faz
fronteira com os limites do olhar.
Se
o homem
amplia o espaço que lhe foi reservado pela
condição animal, os novos limites
perdem enquanto ganham. A realidade humana vai além do que o
pentágono dos
sentidos alcança; mas, por medo de se perder, lança
âncoras sobre o nada em que
se amarra. Cada cultura estabelece os limites do real através de
um processo de
convenção implícita. Neste espaço de
convenção vestimos as máscaras disponíveis
no guarda-roupa de segunda mão das épocas. O mundo dos
homens ultrapassa a
materialidade do mundo animal, mas, ao substituir o visível pelo
imaginário,
desvia o olhar do que ainda não foi visto, perdendo a
direção do objeto pleno.
Outros objetos serão construídos, muitos, milhares,
gastando esforços e energia
suficientes para descobrir os recônditos da natureza. Objetos
cheios de vida
que se convertem na nossa vida; incapazes, porém, de capturar o
obscuro objeto
do desejo.
Ultrapassamos
o universo animal. Tornamo-nos criadores; como se deuses fôssemos. Rompemos a
fronteira da presença para encontrar vozes e sentidos na ausência. Mas não
lançamos o olhar além dos limites da convenção social, do velho mundo herdado
dos ancestrais. Com o saber recebido, recebemos também não-saberes, dissabores:
vendas para os olhos e desvios para os caminhos tangenciais. Só no sonho ou no
verso legitimamos o risco, a contravenção do estabelecido. O percurso do olhar
é traçado pelos objetivos da civilização, e não pelo movimento do objeto.
Caeiro
recusa tal prisão – a submissão das percepções do homem às diretrizes da
cultura –, propondo o retorno à dimensão primitiva das coisas.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
[OP, 217].
O mesmo
mestre da simplicidade admite o quanto complexo seria desnudar a alma,
pendurando num cabide as vestes que a cultura cingiu ao corpo diáfano. Despidas
as vestimentas que o vento dá corpo, o que sobraria desta alma humana que a
cultura veste para que seja vista – e exista?
Sobraria,
talvez, o vácuo, o vazio. O nada desnudo.
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
[OP, 72]
Desvestida
a alma dos vínculos com a cultura, veríamos diante dos nossos olhos esta mesma
alma desnuda se desmanchar, não ficando nada que não fosse a veste, vazia.
Mas o
poeta da natureza continua cantando; fazendo da sua arte um monumento de
impugnação contra a própria arte; valendo-se da fala para dizer o silêncio;
falando a língua dos homens para anunciar a falência da fala, enquanto
linguagem.
Fernando
Pessoa procura, ao encarnar o mestre Alberto Caeiro, o lugar de fora da
cultura. Sabemos, com os antropólogos, que a cultura tem muitos lugares, os
existentes e os inventados por esta ficção inverossímil chamada cotidiano.
A cultura
é a ubiquidade. Mesmo tendo muitos lugares, ela talvez não tenha o lugar de
fora da cultura. O silêncio absoluto.