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Um senador

do império

 

– “Não reconheço a legitimidade do governo da ditadura. Poder apenas de fato, efeito de um golpe audacioso, produto violento de um crime caracterizado de sedição militar; da deslealdade e da traição ao governo constitucional da monarquia.” São palavras retiradas do Manifesto que o senador Fernandes da Cunha dirigiu à Nação depois do golpe militar que extinguiu o Império e criou a República.

Maior valor tem este gesto de um defensor da democracia, quando se sabe que ele teve o seu nome indicado pelo Marechal de Ferro, Floriano Peixoto, para a presidência da recém-criada República. Quantos políticos brasileiros recusariam pongar no bonde do poder, mantendo a defesa dos seus princípios?

O argumento do senador baiano se fundamentava no fato do povo brasileiro não ter se pronunciado sobre as mudanças impostas a partir de 15 de novembro de 1889. Como um grupo de militares decidiu dar o golpe no governo constitucional, ele declarou o pronunciamento das armas como um gesto criminoso.

O senso de respeito à legalidade do advogado Fernandes da Cunha previa que um ato violento contra a ordem constitucional só poderia gerar novas violências e novos crimes contra a ordem democrática. Mas a República brasileira nasceu com este traço genético – à revelia da vontade na Nação e sob a ameaça das espadas. A partir daí, a história escreveu a circularidade dos golpes. A Velha República foi substituída pela Nova, que surgiu “Nova” por mais de uma vez; o velho Estado cedeu ao Estado Novo... Enfim, ainda não saímos do estado de barbárie em que um bando de guerreiros bem armados toma o lugar daqueles que perderam a força.

Mesmo depois de restaurada a ordem constitucional, nossos governantes continuam agindo de forma a bajular os senhores da guerra. Exemplo atual? Veja-se o “bem sucedido” ex-esquerdista Fernando Henrique Cardoso, hoje ocupando a honorável cadeira de primeiro mandatário do país. Ao adotar critérios de revisão na remuneração e nos benefícios dos servidores do Estado, teve a “prudência” de deixar os militares de fora, dividindo a sociedade brasileira em duas facções: a dos armados e a dos deserdados do direito.

Qual a relação das trapalhadas de um governante que quer bisar o seu número no palco do poder com o rigor ético do senador Fernandes da Cunha?

Nenhuma. A relação que continua viva é entre o desrespeito à legitimidade, praticada ontem e hoje, pelos guardiões e pelos sequestradores do poder.

A questão vem à tona a propósito do lançamento do livro A vida do senador Fernandes da Cunha, de Jayme de Sá Menezes.

Curiosamente, a apresentação da obra ao público presente à Academia de Letras da Bahia coube ao senador da República Josaphat Marinho. Como o seu trajeto pessoal é um tanto parecido com o do senador Fernandes da Cunha, a defesa do caráter independente do biografado ganhou foros de declaração de princípios. Lembre-se que o ex-secretário de estado do governo Juracy Magalhães não acompanhou o seu líder quando do golpe militar de 64, preferindo colocar a sua voz a serviço dos opositores do regime de força. Ocupando hoje um cadeira no Senado ao lado dos aliados do Presidente da República, tem demonstrado uma coerência e uma fidelidade aos princípios do direito que surpreendem a lógica de subserviência que caracteriza a política situacionista no Brasil.

Ao saudar a publicação do livro de Sá Menezes, Josaphat Marinho destacou a retidão de caráter e a independência do senador Fernandes da Cunha, mostrando que o velho político baiano não confundia a condição de aliado com a de cumpridor de tarefas. O senso crítico e o respeito à sociedade devem estar acima dos interesses momentâneos de um grupo.

Mas estas reflexões só foram possíveis a partir do trabalho de Jayme de Sá Menezes que, ao levantar nas fontes, os fatos mais significativos da vida de J. J. Fernandes da Cunha, produziu um livro útil e sobretudo oportuno.

Convém lembrar que este médico por formação e estudioso por vocação que é Sá Menezes vem contribuindo para a construção do presente através do resgate de figuras exponenciais do passado. Com o levantamento paciente da vida de personalidades exemplares, Jayme de Sá Menezes dedica toda sua inteligência a uma causa das mais nobres. Sua bibliografia é constituída por cerca de trinta livros e opúsculos, que se dividem pelas áreas da medicina e da pesquisa biográfica.

De um lado, nas obras médicas, o estudioso quer desvendar as sendas do homem enquanto sujeito e enquanto ser vivo; do outro lado, nas obras de erudição e investigação biográfica, ele quer abranger o homem no seu espaço social, construindo, portanto, uma unidade resultante de disciplina e talento para um conjunto de obras de natureza diversificada.

O livro Agrário de Menezes; um liberal do império, foi publicado em 1968, tendo alcançado a segunda edição em 1983, pelo Instituto Nacional do Livro. Vultos que ficaram: os irmãos Mangabeira, de 1977, é resultante de um trabalho de pesquisa em torno da vida e da ação de Francisco, João e Otávio Mangabeira. Ainda hoje, o livro é fonte obrigatória de consulta.

A simples enumeração das várias monografias de Jayme de Sá Menezes sobre personalidades da sua admiração ultrapassaria o espaço desta coluna, mas convém lembrar que em 1994 ele reuniu pequenos estudos sobre vultos e sobre fatos importantes sob o título Na senda da história e das letras. O título bem informa a ambição de toda uma vida dedicada ao trabalho intelectual: preservar e fazer frutificar os exemplos notáveis. Este também é o objetivo do novo livro do autor, A vida do senador Fernandes da Cunha.

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Um senador do império. Artigo crítico sobre o livro A vida do senador Fernandes da Cunha,  de Jayme de Sá Menezes. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 6 out. 97, p. 7.

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Correspondências para esta coluna:
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