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Luz mordaz

 

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Depois de vinte anos
sem escrever,
Carlos Heitor Cony
retoma o lugar
conquistado
e republica
o seu primeiro
e mais denso romance,
O Ventre.

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São poucos, na história da literatura, os livros de estreia que continuam se impondo em meio à obra do autor. Com o tempo, o escritor aprimora a arte da escrita e descobre a forma de adequar a sua sensibilidade à sensibilidade do outro. Diferentemente dos livros de informação, os textos literários, ou de ficção, denunciam mais claramente os estágios de instabilidade ou de maturidade do autor.

Raros são os escritores cujo primeiro livro permanece como obra prima no conjunto da sua produção. Guimarães Rosa é um destes casos. Sagarana continua sendo, para muitos leitores, seu melhor volume de contos; um verdadeiro mar de histórias e vidas plasmadas nos vãos das palavras. Umberto Eco fez de O nome da rosa seu grande modelo. Mas, tanto o mineiro quanto o italiano reservaram suas obras de estreia literária para a maturidade.

O médico do interior João Guimarães Rosa andou revendo e rescrevendo os contos de Sagarana por muitos e muito anos. Alguns deles, mais de uma década antes de integrar o volume definitivo, fizeram parte de livros de contos que permaneceram inéditos. Uma destas coletâneas participou de um concurso literário e perdeu para Maria Perigosa, de Luís Jardim, conforme testemunho de Graciliano Ramos, que fazia parte da comissão julgadora.

Com paciência e humildade, Guimarães Rosa acolheu as restrições ao seu trabalho e burilou cada uma das narrativas, transformando-as em pedras de cintilância e perfeição. Já homem maduro, a correr mundo como diplomata, deu por terminado o trabalho de carpintaria – ou melhor, como queria Bilac, de ourivesaria – de Sagarana.

Já Umberto Eco tornou-se conhecido como filósofo e publicou quase uma dezena de livros antes de se aventurar no primeiro romance. O nome da rosa foi uma demonstração prática de suas teorias, demonstrando a possibilidade de unir a qualidade das obras eruditas à agilidade dos best sellers.

O VENTRE – A atividade jornalística de Carlos Heitor Cony contribuiu para que ele chegasse ao domínio de um texto eficiente e bem elaborado. Tendo marcado época na imprensa do Rio de Janeiro, como articulista, cronista e editorialista, Cony ultrapassava as limitações do texto informativo e procurava, mesmo nas reportagens, imprimir um traço pessoal e reconhecível pelo público.

O ventre, publicado em 1958, revelava um romancista capaz de dominar plenamente as exigências da história contada. Se o livro já trazia as marcas que impuseram o nome de Cony no quadro do romance brasileiro – para esta oitava edição –, o autor reviu e rescreveu a obra: “Mantive o essencial de um texto escrito há quarenta anos, inclusive ‘o sentimento amargo e áspero’ que, esse sim, fiquei devendo ao mestre Machado de Assis”.

Na verdade, Cony não deve a Machado a amargura e a dolorosa resignação ao sofrimento trazidas pelo protagonista. O derrotismo do fim de século (“a carne é triste” e tudo já foi feito), adicionado ao existencialismo francês e a náusea da razão, transformam o sentimento do mundo, tomado a Machado de Assis, na vertente do sintoma que eclodiria no pós-guerra e cresceria nos anos cinquenta. A assimilação de todas estas experiências, anteriores à sua, permitiu ao autor de O ventre forjar uma nova experiência – traduzida em ficção e própria da sua obra. 

A atmosfera pesada, onde se respira um misto de asco e desânimo, foi enriquecida no Brasil por autores estreantes como Breno Accioly e Carlos Heitor Cony. O inominado protagonista de O ventre tem parentesco com o menino João Urso, das narrativas de Accioly. Se o desprezível João Urso tinha um nome, nem isto sucede ao rapaz narigudo e desengonçado do romance de Cony.

Prova incômoda de uma relação proibida, o feto indesejado foi expulso do ventre para continuar indesejado como bastardo de uma família. Três crianças, nascidas de relações triangulares e amores divididos, constituem, em tempos e lugares diferentes, os motivos da trama narrativa. Nascido de forma indesejada, o protagonista – despojado do amor familiar e da própria estima – transita pelas páginas do livro também despojado de um nome. Um nome que fosse sua marca, sua presença, seu título de nascimento.

Com calor apagado, desejo frio, ódio e amor requentados em cinzas mornas, o herói sem grandeza espera, cinicamente, que as pequenas tragédias existenciais sigam seu curso. Ao homem caberia apenas contemplar os fatos e aceitá-los.

Mas a atmosfera rarefeita, de personagens sombrios sobre um palco mal iluminado, nas mãos de um escritor hábil como Carlos Heitor Cony, possibilita a criação de uma obra clareada por raios de sol. O ventre é um grande livro! A exclamação do leitor, que sai das suas páginas encharcado por um jorro de luz gelada, é, no mínimo, esta. Ou outra que melhor possa traduzir a impressão de estar diante de uma obra que fica gravada como uma cicatriz.

Uma espécie de sarcasmo e de resignação socrática desembocam, não raro, numa visão divertida do mundo. Irônica, talvez. O humor mordaz é percebido e retirado das situação mais tensas e dramáticas. O que poderia ser uma tragédia explode numa comédia de enganos, como a voracidade amorosa da concorrida esposa de um resignado capitão. Expulso do colégio, castigado e ofendido, o herói obscuro considera os fatos com um riso de mofa. Tudo que condena, salva.

Os mesmos raios de sol que iluminam a história, às vezes, aquecem o afeto do protagonista, mas a descrença e a inapetência para a vida são mais fortes. A inércia vence o movimento. Como nas luzes da ribalta de Chaplin, vidas que se acabam a sorrir são luzes que se apagam. Nada mais.

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Luz mordaz. Artigo crítico sobre o livro O Ventre de Carlos Heitor Cony. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 15 jun. 98, p. 7.


































 
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