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Unanimismo:
a harmonia perdida

 

        Quando Jules Romains escreveu Morte de Alguém, em 1911, o mundo e a França viviam um despertar de século cheio de perspectivas animadoras. O homem podia deixar de habitar os recônditos de um caramujo, podia deixar suas máscaras e se realizar no seio da coletividade. A promessa de leite e mel parecia brotar da vida social. A cidade de Paris retratada neste pequeno romance era humana, solidária, e, certamente, muito distante da metrópole deste nosso fim de século.

        Foi neste contexto que Romains concebeu o unanimismo como doutrina estética refletindo a confiança do homem na sociedade que os últimos dias do século XIX haviam desterrado. Se desde o romantismo o indivíduo se recolhia a si mesmo, era preciso reintegrá-lo ao meio. Em Morte de alguém esta integração é perfeita. Ao fundir sua alma à alma da coletividade, o homem se vê íntegro e mais completo.

        As promessas edênicas de um paraíso perdido merecem a fé do homem que não acredita no céu dos deuses. O éden é a terra habitada pelo homem, a comunidade unida pelos laços de uma alma solidária e unanimista. O herói de Morte de alguém só se realiza plenamente quando, arrebatado de si, tem sua alma fundida à alma da coletividade. O velho maquinista Jacques Godard transportava nos seus vagões uma gente da qual se mantinha distante. Mas esta gente foi solidária ao homem anônimo de forma extraordinária.

        Como ficção de um mundo melhor, Morte de alguém foi considerado por muitos uma obra prima. Mas o leitor deste final do século XX talvez não compartilhe tão unanimemente este ponto de vista. O realismo utópico de Jules Romains retrata uma Paris que hoje se afigura ficção inverossímil de qualquer cidade. Trata-se de um livro situado e datado. Um romance que para ser lido e melhor compreendido requer do leitor o esforço para abandonar momentaneamente as circunstâncias de agora.

        Visto no seu próprio contexto, a tecelagem do texto encanta tanto quanto a trama. O autor antecipa muito do romance dos anos seguintes. O contraponto, a simultaneidade das situações, como quebra de uma linearidade de espaço e tempo, mostram um Jules Romains capaz de realizar muito daquilo que asseguraria o caráter renovador do romance dos meados de século.

        O recorte do texto nos apresenta flagrantes de situações diversas, onde as ações e os sentimentos são capturados por uma câmera que o cinema ou a televisão ainda não foram capazes de inventar. Se, nos telejornais, nós vemos pessoas em lugares diferentes serem reunidas na tela, na narrativa de Romains vemos estados de alma, colhidos aqui e ali, para mostrar a sintonia entre os homens, a vida dos grupos, que não se opõe à vida das pessoas; mas é a sua ampliação interior.

        O otimismo da narrativa de Jules Romains enfrenta até mesmo a inexorabilidade da morte. Se o tema do livro é a morte do homem, este tema se transmuta na vida da coletividade. Apesar das existências sem luz dos personagens, o livro teima em encontrar clarões e focos de luz em cada lugar.

        O Outro é a grande luz do indivíduo; por isso os personagens estão sempre a sondar os espaços intersubjetivos, estão se mirando no espelho vivo das pessoas. Aí, sua imagem é refletida como mais importante, como capaz de ser notada e admirada.

        As forças da vida sempre se impõem à morte, como no passagem seguinte: “Não sabiam mais encontrar palavras; tinham vontade de calar-se, mas receavam separar-se. Ambas pensavam na morte ao mesmo tempo, na coisa inconcebível que é morrer; e experimentavam uma ternura pelo que parece contrariar a morte; sentiam-se bem mais longe da morte, enquanto estivessem lado a lado.” (p. 84)

        É talvez por isso tudo que foi dito que o mundo descortinado com a Mort de quelqu’um é revivido neste final de século, em língua portuguesa, no texto de Cláudio Veiga. Somente um tradutor de poesia, isto é, de grandes sentidos, condensados em pequenas sentenças, conseguiria vencer o desafio de ir em busca de um tempo, ou mais precisamente, de um unanimismo perdido. Estudioso de literatura comparada, o professor Cláudio Veiga faz da tradução um diálogo de culturas diversas e distantes, no tempo ou no espaço. Depois da sua primeira Mini-Antologia da Poesia Francesa, publicada em 1972, ele continuou o trabalho de buscar correspondências em nossa língua para as forêts  de symbole que unem e separam os homens. Com a sua recente Antologia da Poesia Francesa (do século IX ao século XX), o antigo catedrático de Língua e Literatura Francesas da UFBA ganhou reconhecimento nacional. Premiado pela União Brasileira de Escritores, o seu trabalho de tradutor mereceu ainda a láurea da Academia Francesa.

        Como não traduz por encomenda de editores, mas como uma forma de manifestar a sua própria criatividade, através da criação artística dos seus mestres de sempre, Cláudio Veiga pode fazer com que suas traduções sejam recriações brasileiras de obras que considera permanentes.

        E com isso ganhamos nós, os leitores.

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Unanimismo: a harmonia perdida. Artigo crítico sobre o livro Morte de alguém, de Jules Romains. Romance, trad. Cláudio Veiga. Rio de Janeiro, Record, 1995, 160 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 4 set. 95, p. 5.





































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