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SINCRETISMO
E OUTRAS MANHAS
Águas
do rei, de Ordep Serra, aborda importantes temas relacionados
ao candomblé, em particular, e ao negro, em geral. Como não fica restrito às
questões religiosas, mas discute outros aspectos da cultura de substrato
africano, o livro traz um vasto painel etnográfico do viver baiano.
A
natureza antropológica dos estudos tem a sisudez científica quebrada por uma
linguagem inteligente, bem humorada e extremamente ágil, especialmente nas
primeiras páginas do livro. Como Ordep Serra sabe escrever, e muito bem (o que
é essencial no âmbito dos estudos humanísticos ou das ciências da cultura),
Águas do Rei, além de contribuir para a reatualização do enfoque do universo
estudado, é uma opção de leitura agradável e um estímulo ao juízo crítico do
leitor.
Formado
basicamente de três longos ensaios — “Jeje, nagô e companhia”, “Sincretismo e
separação” e “Jorge Amado, sincretismo e candomblé: duas travessias” — o livro
encontra seu centro constelar no ensaio “Sincretismo e separação”, que, aliás,
foi o ponto de partida da obra. Aí, a formação clássica do autor e sua
intimidade com o pensamento grego e a riqueza mítica do paganismo iluminam a
discussão de uma cultura moderna que substitui o pensamento cristão ocidental
pelo paganismo africano. O livre trânsito do antropólogo por um espaço cultural
de considerável amplitude faz do seu trabalho uma obra rica e sedutora ao
leitor inteligente. Admiramos sobretudo a invejável formação clássica que vem
em socorro dos seus argumentos.
Se o
primeiro ensaio traz alguns fatos pitorescos, porém marcados por uma reflexão
acurada e interpretativa, sem abrir mão de uma linguagem com certa dose de
irreverência, o segundo mergulha fundo nas águas do Rei. A situação do
sincretismo nos nossos dias é vista de um modo que obriga o leitor a formular
hipóteses sobre o destino religioso de um dos maiores países católicos do
mundo.
Durante
muitos anos, a Igreja Católica insistiu em afastar seus fiéis de manifestações
consideradas sincréticas, em oposição à pretensa pureza da sua liturgia. Hoje,
a partir de uma revisão histórica empreendida por líderes religiosos de alguns
terreiros, o projeto de apagamento do sincretismo ganha expressão em uma das
nossas mais respeitadas Casas de Santo. Não esqueçamos que os estudos
etnográficos que se valeram da observação do candomblé retornaram a este espaço
como obras de consulta e (in) formação: ialorixás e ministros do axé passaram a
buscar nas obras etnográficas um caminho de reencontro formal com a velha
África. Assim, análises de ontem e de hoje, como a de Ordep Serra, têm
influência direta sobre a comunidade do axé.
Ele
lembra que o sincretismo, hoje exorcizado pela Igreja, foi imposto por ela
durante a vigência do sistema escravagista. Os negros eram batizados compulsoriamente,
até mesmo nos portos, onde se tornavam “ao mesmo tempo, cristãos e mercadorias.”
Mas a integração incompleta destes homens-mercadoria na sociedade senhorial — o
que aliás era uma imposição social — fez com que a Igreja não tivesse êxito em
dotar os negros de “almas brancas: a água do batismo não lavou em todos a
consciência dos valores próprios”. Mesmo perseguidos na adoração das suas divindades,
eles souberam encontrar pontos de convergência entre os orixás e a hierarquia
de inspiração pagã que liga os santos católicos ao Deus judaico-cristão. Neste
sentido, além da manha e da astúcia necessárias à sobrevivência da humanidade negra,
o sincretismo foi marcado por uma orientação teológica profunda e uma intuição
mística de grande saber.
Conforme
demonstra Ordep Serra, equivalências sincréticas como a estabelecida entre São
Jorge e Oxóssi são verdadeiros achados “arqueológicos”. A presença desta
entidade antiga, de provável inspiração pagã, no panteon católico já convida a
uma ressincretização...
Mas
o problema que hoje se apresenta diante de posições contrárias ao sincretismo
não mais ameaça o candomblé, cujo culto ganhou prestígio social e enorme
promoção na mídia. Tanto o Cardeal Primaz do Brasil, quanto a Ialorixá do Axé
Opô Afonjá defendem com relativa intransigência o apagamento da identificação
historicamente sedimentada entre as duas religiões. Numa cidade como Salvador,
cuja população de origem negra chega a oitenta por cento, tal ruptura ameaça
tornar o catolicismo uma das religiões com menor número de adeptos. O grande
contingente de fiéis baianos que enche igrejas como as do Bonfim, de São
Francisco, de São Lázaro, e inúmeras outras, é formado por pessoas que procuram
nos santos católicos um encontro tangível e personalizado com o Orixá da sua
cabeça ou da sua devoção.
Mas
se ontem, a Igreja não conseguiu exorcizar o sincretismo, será que hoje os
líderes religiosos do Candomblé, inspirados em perspectivas semelhantes, conseguirão
despojar este aspecto da fé do baiano? Mesmo o resgate do orgulho étnico —
ferido por imposições — pode não ter força suficiente, quando o assunto diz
respeito a um dos sentimentos mais arraigados e profundos da nossa gente: a fé.
Creio que de pouco adianta ao homem comum, ao filho contrito dos santos negros
e brancos, a compreensão histórica ou etnográfica das origens do sincretismo.
Se este nasceu de uma imposição, a identidade encontrada e construída ao longo
dos anos forjou uma religiosidade baiana com certa independência tanto de Roma
quanto da África. Se o homem é formado por suas crenças, será preciso destruir
este homem para impor novas crenças.
Neste
sentido, a compreensão que Jorge Amado tem do sincretismo e da mestiçagem deixa
de lado a análise dos fatores históricos para considerar o seu resultado.
Assim, quando, de um lado, os antropólogos e, de outro, os críticos literários
insistem em encontrar ingenuidade e excesso de simplificação no pensamento do
narrador amadiano, estamos diante da aceitação de uma práxis. Quando as
discussões ganhavam caráter demasiadamente escolástico, o velho Marx apelava
para a prática concreta dos homens. Seria ingenuidade, também?
Convém
não comparar Jorge Amado com Marx. Mas por que a obsessiva procura de pecados e
vícios na obra amadiana? Os erros e equívocos de fato cometidos pelo escritor
não são suficientes para assegurar a sua humanidade, ou a sua baianidade? O
ensaio “Jorge Amado, sincretismo e candomblé: duas travessias” é uma honesta
abordagem etnográfica da obra do escritor, onde são destacados aspectos positivos
e contraditórios no universo ficcional construído por Jorge Amado.
Por
outro lado, Ordep consegue identificar fortes preconceitos em críticos que
elegem por esporte a caça dos preconceitos da narrativa amadiana, flagrando uma
deliciosa guerra de não-me-toques. Quando Jorge Amado sustenta a celebração na
raça negra na sensualidade e na sexualidade despida do sentimento de culpa
infundido pela ideologia cristã, muita gente vê aí, ao contrário da exaltação,
um rebaixamento do negro e do mestiço. Quando uma mulata amadiana se entrega ao
homem amado, a crítica aponta um excesso de doação e permissividade por parte
da mulher, estabelecendo critérios e normas a serem obedecidos pelo desejo.
Ordep dá o troco, se divertindo com as peripécias de heroínas loiras e arianas
ao longo da tradição literária ocidental.
Ninguém
acusa Shakespeare de racista por permitir que a sua Julieta se entregue com
relativa facilidade ao inimigo da família, mas Gabriela é acusada de permissiva,
como as demais mulatas pintadas por Jorge Amado. Para os censores mais enfezados,
a sensualidade retratada na mulher baiana não seria resultado de uma observação
pertinente, mas de um preconceito do escritor. Segundo tais críticos, a mulher
baiana seria a própria encarnação da casta Virgem Maria...
O
criador de Grabriela incomoda a muita gente, entre outras coisas, por ter sido
o primeiro intelectual de respeitabilidade a assumir, com as armas da ficção e
da arte, a defesa e a dignificação da raça negra e, principalmente, da raça
mestiça que, segundo ele, seria o brasileiro mais autêntico. Os defensores da
negritude de plantão querem ser os únicos a entrar para a história por combater
a intolerância e o preconceito, negando ao romancista uma qualidade básica da
sua obra.
Embora
Ordep Serra não dispa o hábito de monge, ao examinar a obra amadiana, seu
estudo é uma importante contribuição ao entendimento desse escritor. Ordep fala
da ficção de Jorge Amado como um antropólogo diante de uma realidade simbólica
de natureza social, o que não ocorre, por exemplo, com Roberto da Mata, que lê
Jorge Amado com os de um leitor de ficção.
Mas
o livro Águas do rei de Ordep Serra é sem dúvida uma contribuição importante
não só à etnografia, mas ainda, pelo enfoque do objeto, aos estudos literários.
______________
Sincretismo
e outras manhas. Artigo crítico sobre o livro Águas do rei, ensaio
etnográfico, de Ordep Serra. Petrópolis, Vozes, 1995, 366 p. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 22 mai. 95, p. 7.
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