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O ROMANCINHO

DOS TURCOS

 

Ainda hoje há quem ache que a literatura e as artes foram feitas para atazanar o juízo do vivente.

A escola, a universidade, as instituições acadêmicas são res­ponsáveis, por um lado, pelo enriquecimento teórico do fazer artístico e, por outro lado, pela construção de uma barreira entre esta atividade criadora e o público. As obras de arte preferidas pela escola, pelo gosto acadêmico, são, quase sem­pre, aquelas que mais se distanciam do gosto comum. O teórico engomado suspeita do texto alegre e brincalhão, tendo uma queda toda especial por tudo aquilo que causa des­prazer e desconforto.

O pior é que esta doença pega. Muita gente vai pelo mesmo beco sem saída. Assim, filme para intelectual ver é filme chato, perverso, sustentado numa trama sadomasoquista que faz o pobre do pagante sair do cinema com a cara na fossa. Aí o cidadão que já se acostumou a sofrer, na fila do banco, nas obras do governo, na saia da sogra, acha que o filme é denso, é forte e outras coisas mais. Livro é a mesma coisa. Autor divertido, alegre, não é autor para ser levado a sério. Autor de peso é aquele cuja leitura pesa, entedia.

Veja o caso de Jorge Amado. Até hoje tem gente que não se conforma que o antigo escritor das misérias e mazelas da classe proletária tenha aderido ao romance burguês; tenha feito da sua pena uma pluma leve, que leva ao riso breve e faz cócegas na cabeça.

Mas o gosto de sofrer já vem de longe: tudo que é bom é pecado ou engorda.

Nós, brasileiros, estamos em boa companhia, os portugue­ses. Foram eles que aqui chegaram e resolveram acabar com a alegria dos nativos: tinha índia pelada pra todo canto e ín­dio vivendo em pecado com as vergonhas, deles lá, pra todo lado.

Mas os portugueses não gostavam de folga. Eram gente de bem. Veja que lá pros tempos de Dom João Corno, em mil qua­trocentos e tantos, os poetas palacianos resolveram compor a chamada poesia de folgar. Feita para divertir a corte e con­quistar as damas. Não deu outra: com o passar do tempo, esta poesia passou para a história como coisa sem valor literário. Os anos quinhentos, que vieram em seguida, quiseram exigir do escritor o papel de condutor espiritual do seu povo. A arte está a serviço das causas nobres. Alegrar e divertir é papel dos palhaços. Por isso, ainda hoje há quem ache que a literatura e as artes foram feitas para atazanar o juízo do vivente.

Se você pensa deste modo, então passe por longe do livri­nho que Jorge Amado acaba de publicar: A Descoberta da Améri­ca pelos Turcos, ou ainda Os Esponsais de Adma. Feito para rir e divertir, o texto conta as aventuras de sírios e liba­neses pelas terras grapiúnas. Somente um escritor maduro e senhor do seu ofício poderia escrever um livro que é só riso. Nada de siso. Uma história divertida, com final feliz e tudo que a gente tem direito. Afinal, quando um escritor amadu­rece, descobre que impor histórias tediosas é coisa do ado­lescente que o adulto ainda quer ser.

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Ainda hoje há quem ache

que a literatura e as artes

foram feitas para atazanar

o juízo do vivente.

 

Este é um livro para a gente ler

de uma sentada, rir, rir

e não pensar em nada.

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No mais, é uma história de safadeza, contada com o jeitão bem brasileiro que só um jagunço das roças de cacau ou um pescador do mar de todos os santos sabe contar. Com malícia e graça que transformam o erótico num jogo inocente como o sor­riso de uma prostituta.

Na fala deste contador de histórias as coisas se confundem, tudo é possível. A lógica da ilógica realidade perde sua logicidade. Isto sois, minha Bahia, isto passa em vosso burgo. Esta é a forma fantástica que o realismo assumiu na obra de Jorge Amado, este é o seu realismo fantástico. Tão diferente e tão próximo do realismo fantástico de outros nar­radores do continente íbero-americano.

A Descoberta da América pelos Turcos é um livro para a gente ler de uma sentada, rir, rir e não pensar em nada. Em nada de ruim. Guimarães Rosa já disse que Jorge Amado é uma criança que continua a acreditar na vitória do bem sobre o mal. É isso que este livrinho ensina. Para quem busca uma mensagem, a moral da fábula, Jorge Amado quer mesmo é mostrar com olhos de menino, com olhos de ternura e generosidade, os emigrantes árabes que ajudaram a construir a nossa cultura, a cultura brasileira. E isso em boa hora, quando árabes pales­tinos sofrem na carne os horrores do ódio mútuo para com os seus irmãos de um mesmo oriente médio e de um outro credo. No livro de Jorge Amado todos são boa gente: "sertanejos, sergipanos, judeus, turcos -- dizia-se turcos, eram árabes, sírios e li­baneses -- todos eles brasileiros".

Não espere o leitor encontar neste pequena narrativa a estrutura de um romance, com os seus personagens plenamente construídos, pois estamos diante de uma sequência de episódios desenvolvidos em torno de um eixo comum: as andanças de dois personagens, Jamil Bichara e Raduan Murad, pelas terras grapiúnas. A rigor, a designação de novela seria mais aceitável que a de romance, conforme aparece na ficha catolográfica, com a sucessão de episódios destas mil e uma noites tropicais. Ou se preferirem, ainda, a de crônica, no sentido que lhe davam os velhos cronistas medievais. Daí, talvez, a designação de romancinho, encontrada pelo próprio escritor para fugir à classificação folmal.

Se alguma coisa mais deve ser dita sobre esta Descoberta da América pelos Turcos, aqui o digo: É mais um livro a serviço da ideologia do humanismo fra­ternal pregado e praticado pelo velho romancista. Na sua escrita, o nosso país é guinado à condição de lugar edênico, onde a diversidade racial não provoca conflitos, mas une a todos -- árabes, judeus, arianos e ne­gros, sem esquecer de nós mesmos, brasilíndios -- em torno de uma nova nação: a nação dos brasileiros de todas as cores e credos.

É a utopia romântica de um escritor que surgiu como voz do realismo socialista e hoje quer ser apenas voz da sua gente.

 

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O romancinho dos turcos. Artigo crítico sobre o livro A descoberta da América pelos turcos, de Jorge Amado. Rio de Janeiro, Record, 172 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 8 mai. 95, p. 7.























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