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Romance português Para a compreensão do conjunto da obra
de Fernando Namora ou das relações das vertentes do seu processo criativo com o
momento histórico e o movimento literário do seu tempo, a discussão do romance
O homem disfarçado continua revestida de capital importância. Se aceitarmos a proposta segundo a qual,
do ponto de vista diacrônico ou histórico, o Neorrealismo português se
estrutura, em linhas gerais, a partir de três fases, observaremos que a obra de
Namora não acompanha, necessariamente, este desenvolvimento de modo contínuo,
ou sequencial. Sem se desligar do conjunto de ideias e tendências que
constituem o Neorrealismo, a obra ficcional de Fernando Namora procura seus
próprios caminhos e saídas – como, inclusive, o fazem todos os escritores que
conseguem se impor para além dos programas e manifestos de um grupo ou de um
momento. Na divisão tríplice proposta para a
trajetória reo-realista, o primeiro momento, iniciado com Gaibéus, de Alves Redol, compreende toda a década de 40, quando tem
lugar o que se chama de "realismo sociológico" ou de "humanismo
dramático". O segundo momento, marcado por obras fundamentais como Mudança, de Vergílio Ferreira, A sibila, de Agustina Bessa Luís, ou O homem disfarçado de Fernando Namora,
tem lugar na década de 50, apesar de alguns livros característicos deste
momento terem sido escritos nos fins da década anterior. Por apresentar pontos
de contato com o realismo crítico, o realismo psicológico, a fenomenologia e o
existencialismo, este momento é identificado como um "realismo
contraditório". De acordo com o critério defendido por Nelly Novaes
Coelho, a literatura portuguesa, a partir dos anos 60, vai conhecer um
"experimentalismo polivalente", onde a consciência do papel da
linguagem é fundamental para o processo criativo. Consequência dos caminhos próprios
tentados pelos escritores neorrealistas e também pelo advento de uma geração
posterior ao chamado instante ideológico do Neorrealismo, esta nova etapa da
criatividade enfrenta os desafios propostos pela moderna ciência da linguagem e
opera no coração do simbólico, visto como base e fundamento da cultura e da
condição humana. Tentemos então confrontar este quadro
geral com o conjunto da obra romanesca de Fernando Namora (ou, pelo menos, com
os livros mais conhecidos), tidos como pontos de referência no conjunto da sua
obra. Os críticos e historiadores da
literatura já dividiram a produção de Namora em três fases, considerando que na
primeira o autor ainda estava marcado pela sedução dos dados psicológicos que
constituíram a tônica do presencismo subjetivista. Somente com a publicação de Casa da malta, em 1945, Fernando Namora
daria provas de um direcionamento da sua obra voltado para o realismo social e
o chamado nova humanismo (que, aliás, constituíram o marco fundador do Neorrealismo).
Mas, mesmo nesta fase, quando a análise dos dramas sociais é o ponto de apoio
da construção romanesca, o autor não deixa de se interessar por tudo aquilo que
acontece a nível da consciência ou além dela, constituindo a zona simbólica do
inconsciente, revelado por Freud com a sua descoberta. É precisamente esta tendência inequívoca
de Fernando Namora – tendência e agudeza para penetrar no outro lado da face
das figuras – que, com O homem disfarçado, em 1957, vai iniciar a terceira
etapa da evolução da sua obra. Nesta nova fase, ele parece deixar de
lado a moda sociológica dos momentos efervescentes da ideologia neorrealista,
retornando ao realismo psicológico. No entanto, não se trata de abandonar
convicções ou desatrelar a arte do contexto social, porque é aí que ele
cristaliza os pontos mais altos do Neorrealismo, e consegue enfrentar a dimensão
psicológica dos personagens (e dos homens), sem cair no psicologismo
sistemático que seduziu os escritores de Presença. É a partir de O homem disfarçado, ou melhor, é com O homem disfarçado que se inicia a verdadeira obra da maturidade do
escritor Fernando Namora; quando o seu talento poético e o seu engenho criativo
falam mais alto do que os pressupostos e esquemas dos movimentos literários. É por isso mesmo que a obra de Namora
não se limita a acompanhar a evolução do movimento neorrealista, mas segue seu
próprio rumo, como se pode observar no confronto dos dois quadros aqui
expostos. Submetendo o talhe neorrealista a um
outro manequim que comporta uma profunda análise do homem e da sociedade,
permutando a compreensão do social stricto sensu pela compreensão do social
lato sensu que envolve, por conseguinte, o individual e o coletivo enquanto
formas indissociáveis –, Fernando Namora joga com a história social e a
biografia, nos seus contornos psicológicos, construindo assim o mundo romanesco
dos seus personagens e situações. O homem disfarçado se estrutura a partir
da história de João Eduardo, um médico que põe a fortuna como meta maior a ser
alcançada, a qualquer custo e por isso mesmo experimenta a náusea do dinheiro
fácil e da vida burguesa sem maiores perspectivas de realização além do acúmulo
obsessivo de bens materiais. Ao construir a trama de O homem
disfarçada, o autor inaugura uma nova etapa de sua obra, superando os esquemas
e matrizes neorrealistas, quando vê o homem como resultado não apenas das
condições econômicas que condicionam a estrutura social, mas quando procura
sublinhar a importância dos aspectos psíquicos e individuais como responsáveis
pela fisionomia do social. Pode-se dizer que, quando o figurino neorrealista
procurava realizar uma literatura marxista, consequentemente sublinhando, de
forma metonímica, a importância dos dados econômicos, Namora junta a esta
preocupação, depois de retirar dela o caráter panfletário, a dimensão freudiana
do homem. Se com Marx compreendemos a tirania do capital, com Freud a tirania o
inconsciente e o papel da libido são postos em relevo. A fase de construção poética da
maturidade estilística de Fernando Namora situa o homem a partir da ótica
marxista complementada, no seu aspecto subjetivo (que o próprio Engels admitiu
que não foi suficientemente explicitada), pelas lentes freudianas. Um, por
conseguinte, servindo para assinalar os aspectos não convenientemente
analisados pelo outro. Mas o texto de Namora não se deixa
reduzir a uma ilustração ficcional destas teorias, embora elas constituam
verdadeiros sistemas filosóficos – os últimos e mais completos da modernidade.
A sua obra literária é consequência de um momento histórico do homem, e do
intelectual português, situado e datado, onde Marx e Freud foram incorporados
como alicerces científicos da cultura. O homem moderno pensa e age incorporando
à sua ideologia aquilo que os dois mestres tomaram como fundamentos das suas
obras. É por isso mesmo, pelo compromisso com a
vida nos seus vários aspectos, que os personagens de Namora não são descarnados
do seu tempo e do seu lugar, nem são ingênuas máscaras desprovidas da dimensão
inconsciente que nos afirma e contradiz. O homem disfarçado já contém as raízes
de uma preocupação que dá forma a um dos seus últimos romances, O rio triste, ambos ligados por um elo
forte: a marca da escrita exemplar de Fernando Namora, onde o risco do
experimento torna novo o conhecido – fazendo com que seja conhecido o novo. _______________________________ Romance
português. Artigo crítico sobre o livro O
homem disfarçado, de Fernando Namora. Lisboa, Bertrand, 1995. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 16 out. 95, p. 5. |
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