O
riso envergonhado
Carmen Rico-Godoy é uma jornalista que
faz grande sucesso na Espanha, não só na sua profissão, mas como autora de best sellers e argumentos para o cinema.
O Rio de Janeiro e a vida brasileira são conhecidos da autora e ajudam a compor
a paisagem da sua escrita. Como ser
mulher e não morrer na tentativa é um destes livros feitos para divertir o
leitor (ou a leitora!), uma espécie de bem humorado guia de sobrevivência
feminina, como pretendem os editores.
A autora abandona os costumeiros
recursos do receituário de comportamento para sustentar o seu livro numa
narrativa de ficção ágil, leve e bem construída, onde são apagados os limites
entre invenção e realidade. Narrado em primeira pessoa, a protagonista é, como
a autora, uma jornalista; identificação esta que constitui a pedra de sustentação
da ponte que é construída entre a ficção e a realidade.
A crônica é uma forma de escrita
cotidiana inserida no jornal que percorre o mesmo caminho. Trata-se de um
estilo jornalístico ou literário que por vezes rompe com as regras do
jornalismo e se impõe através de recursos da literatura e, por outras, se
afasta da criação literária para se afirmar como escrita jornalística. Assim é
o livro de Carmen Rico-Godoy: uma crônica do cotidiano feminino, escrita com
apurado humor.
A narrativa se desenvolve através de uma
seqüência temporal, como numa prosa de ficção linear, onde o cotidiano de uma
mulher é exposto através das suas variações de humor nas quatro estações do
ano. Tudo começa nas férias de verão, quando a protagonista e seu marido,
Antonio, encontram um tempo para se isolarem a dois. Para se isolarem um do
outro. “Quando eu não quero, ele sempre quer” é a queixa título que abre a
história de Carmencita, uma mulher sempre à beira de uma explosão histérica.
Nos três primeiros capítulos, o livro consegue alcançar o seu objetivo de
traçar um bem humorado painel do cotidiano da mulher. Um painel crítico, sob
uma perspectiva feminina (talvez feminista), onde a figura do homem é
invariavelmente identificada com a opressão.
E aí, neste ponto em que sabe usar os
recursos da ficção para construir suas personagens caricaturais, Carmen
Rico-Godoy é de fato uma escritora. Ela expõe com clareza e irrespondida
evidência a situação da mulher no cotidiano do mundo moderno, onde, mesmo tendo
conquistado a independência econômica, continua sendo vista pelo homem como a
responsável pela atividade doméstica. Quando surge um problema em casa o homem
esquece que a mulher tem suas próprias atividades profissionais e espera que
ela dê conta de tudo.
Além disso, a vida afetiva da mulher é
dificultada em situações como a descrita pela protagonista, numa das suas
crises de revolta: “Mas o pior é a moda das garotas se dedicarem a curar o
complexo de Édipo com senhores vinte anos mais velhos que elas. Acho que isso
sempre aconteceu. Toda a vida as garotinhas se apaixonaram por seus professores
e pelos amigos de seus pais. Mas antes, a sociedade e os próprios senhores
consideravam estas paixonites como coisas passageiras que era melhor evitar,
ocultar e naturalmente tentar arrancar pela raiz. Agora, em troca, virou moda
aceitá-las como um fato natural e inclusive bom. Eu não tenho nada contra. Me
parece ótimo que um senhor e uma garota se apaixonem e vão viver juntos se
querem. O que me revolta é que a sociedade ainda condena os amores ou escapadas
entre uma senhora madura e um garoto. Continua-se considerando um fato
aberrante, raiando a depravação. E a sociedade sempre supõe e imagina que no
meio há um pagamento, uma grana, porque se não como pode um garoto andar com uma velha de quarenta e cinco anos?”
A autora deste livro pinça aqui e ali
aspectos da vida da mulher com o objetivo de tornar evidentes as evidências
que, por si mesmas, não foram capazes de serem notadas. O humor é a sua arma.
Daí a eficácia deste livrinho divertido que, ao fazer troça do sério, vale mais
do que os enfadonhos estudos das feministas de plantão. O riso sempre foi
usado, ao longo da história literária, como instrumento de crítica e avaliação
dos costumes. Se você repreende alguém, seu objetivo pode ser menos atingido,
em comparação aos casos em que você finge não repreender, evidenciando o
risível da situação.
Como
ser mulher e não morrer na tentativa é um livro que pode ser lido de uma
sentada, como uma sessão de humor. Seria uma obra de excelente qualidade, no
gênero, caso a autora não invertesse a estratégia da narrativa na parte final.
As quarenta ou cinquenta últimas páginas deste livro jogam por terra toda a bem
urdida ficção humorística dos capítulos iniciais.
Mesmo nós, homens, acompanhamos com
incondicional solidariedade as peripécias da protagonista Carmencita, sempre
explorada e incompreendida pelo seu companheiro. Dando tudo e nada recebendo
nos seus três casamentos, a personagem-narradora converte-se numa mártir das
experiências conjugais. Até o mais ortodoxo dos machos termina convencido de
que, diante de tanta insensibilidade masculina, a protagonista deve deixar os
homens na mão e arranjar uma namorada. Mas isso não é, nem de longe, insinuado
pela personagem. Ela continua firme, no seu papel de vítima. É o leitor que
toma a decisão.
Toda bem humorada eficiência da
narrativa é desmontada quando os traços da protagonista são compostos com
linhas ainda mais definidoras da esquizofrenia. Nas suas variações de humor, a
personagem termina se fixando na parte mais melancólica e dolorosa. Há uma
certa escolha do sofrimento, uma opção masoquista, na qual a personagem perde
toda sua graça e se transforma numa figura tragicômica sem maior densidade
humana. É patética e de uma obviedade grotesca a frase final: “Quero ser um homem,
Antonio, quero ser um homem.”
Se o leitor ou a leitora preferem ficar
com um bom livro, convém cortar as últimas páginas e jogar no lixo. Porque
depois de uma bem humorada narrativa, a autora dá lugar a umas queixas
depressivas e sem dimensão criativa, que destróem a eficácia da sua escrita.
Aí, a revolta da ideologia feminista suplanta a aparente neutralidade do discurso
ficcional, quebrando o ritmo do texto.
Se a escritora tivesse um copy desk, como a jornalista, este seria um excelente livro de
humor e amor pela vida. Cedendo à tentação do dito direto e doutrinário, o riso
irônico e sábio transforma-se num choramingar inexpressivo, restando apenas o
riso envergonhado.
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O riso envergonhado.
Artigo crítico sobre o livro Como ser
mulher e não morrer na tentativa, de Carmen Rico-Godoy. Ficção, trad.
Ernani Ssó. Porto Alegre, L&PM, 1995, 160 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 11 set. 95, p. 5.