Poesia engajadA
Inquisitorial é o
primeiro e o mais expressivo livro do poeta e compositor José Carlos Capinan. Publicado
em edição artesanal de pequena circulação, em 1966, com capa em xilogravura de
Calazans Neto, o pequeno volume foi conhecido apenas por um público restrito. Em
seguida, Capinan tornou-se um nome nacional, como compositor de música popular,
inicialmente parceiro de Gilberto Gil e Caetano Veloso, na fase do
tropicalismo, e posteriormente de outros grandes compositores.
Somente há
poucos anos atrás o poeta voltou ao território dos livros, publicando dois
outros títulos, sem o impacto causado na década de sessenta pelo seu Inquisitorial.
* * *
Esta nova edição
marca um duplo e auspicioso retorno: o encontro definitivo da poesia de Capinan
com o leitor brasileiro e uma nova fase editorial da Civilização Brasileira,
capitaneada por Ênio Silveira.
Durante
muitos anos a Editora Civilização Brasileira foi a principal trincheira de
investidas do pensamento brasileiro. Publicou nossos melhores autores e editou
uma revista lida e respeitada por todos. Durante os longos anos de vigência do
regime militar e a gradual diminuição de investimentos na vida intelectual do
país, a Editora foi se enfraquecendo, até ser vendida a um grupo português.
Hoje, a Civilização Brasileira funciona atrelada à Bertrand Brasil, com sede no
Rio de Janeiro e em São Paulo, e o velho capitão Ênio Silveira, antigo dono da
editora, foi convidado para devolver-lhe o prestígio, atuando como diretor
editorial. Assim, Ênio vem editando muitos títulos e, entre estes, o livro de
Capinan que apesar de ser uma reedição para alguns baianos, para o grande
público brasileiro é, de fato, um lançamento.
* * *
O que
justifica a publicação de Inquisitorial nos anos noventa é a sua
condição de poesia engajada de boa qualidade. Sabemos que durante a vigência da
ditadura de direita, implantada em 1964, o leitor passou a valorizar toda
manifestação intelectual que refletisse a insatisfação do povo brasileiro.
Assim, o simples engajamento do autor já era motivo de aceitação do seu texto,
independentemente da qualidade intrínseca. Os discursos mais retumbantes e
esquerdeiros eram aceitos como literatura e lidos com devoção pela juventude
intelectual. Mas nesta geleia geral alguns poetas, como Thiago de Mello e
Ferreira Gullar, conseguiram erguer suas vozes além da mediocridade aplaudida.
Na Bahia, Capinan fez coro com o que havia de melhor, publicando seu livro de estreia.
O temido crítico José Guilherme Merquior escreveu, dois anos depois, em Paris,
um alentado artigo crítico de declarado elogio à poesia de Capinan.
Esse artigo,
que se tornou conhecido no Brasil ao ser inserido no livro A astúcia da
mímese, uma das obras mais lidas do renomado crítico, agora foi republicado
a título de introdução ao Inquisitorial.
O volume
divide-se em três partes. “Aprendizagem”, com poemas escritos entre 1962 e
1964, “Inquisitorial”, contendo o poema título, dividido em doze cantos,
escrito em 1965, e finalmente “Algum exercício”, incluindo poemas escritos
desde 1959.
Trata-se de
uma das obras mais representativas da chamada “geração de 60” da poesia
brasileira. É evidente que, visto hoje, o livro não desperta o mesmo entusiasmo
de alguns anos atrás. Aquilo que ele tem de situado e datado não mais responde
às exigências do leitor dos anos noventa, mas como testemunho poético de uma época é
sem dúvida um importante e inolvidável marco.
É nesta
perspectiva que discutimos o livro de Capinan, sabendo que isolado do seu
momento, ele perde algo da sua importância. Mas dificilmente poderemos falar da poesia
engajada da geração de sessenta sem procurar na poesia de Inquisitorial
exemplos dos mais marcantes.
Merquior via
a última parte do livro como a mais contestável, pela dicção política mais emocionada
e mais despojada. Mas é precisamente nela que estão textos como “Poema ao
companheiro João Pedro Teixeira” – verdadeiro hino da resistência da
intelectualidade de esquerda –, “Formação de um reino” – eloquente alegoria da
imposição de poderes ilegítimos à vida de um povo –, e, por fim, “Compreensão de
santo” – poema que ultrapassa a sua circunstância e que ainda hoje merece uma
leitura atenta.
* * *
Os três
primeiros versos de “Compreensão de santo” propõem um núcleo ideativo central
para o poema:
"Todos os santos têm o sexo amputado.
E cansados de suster a
própria boca
Maldizem ter fome enquanto comem”.
Quer lido enquanto mera
referência à condição religiosa de santidade, ou metaforicamente como reflexão
acerca da virtude humana, o poema flagra a incompletude dos grandes vultos.
Afeitos a
uma aceitação maniqueísta do mundo, isolamos de um lado as virtudes e do outro
lado os vícios, sem nos apercebermos que as ações humanas não conseguem manter
as qualidades de forma distinta e em estado puro. A prática cotidiana mescla
impulsos positivos e negativos, fazendo com que a predominância de um sobre
outro defina a qualidade da ação.
Somente a
miopia do sectarismo pode aceitar uma ética maniqueísta. Por isso, no mundo dos
homens “todos os santos têm o sexo amputado”. “E cansados de suster a própria
boca maldizem ter fome enquanto comem”, cosoante a descoberta do poeta.
Como a
sexualidade é um dos “vícios” mais combatidos pela moral burguesa, ou pelo
ideal de virtude imposto ao mundo ocidental desde o século XII, quando
se estabelecia um fosso entre os prazeres do mundo pagão e a conduta proposta
pelo clero aos povos cristãos, só resta ao praticante da virtude amputar o
desejo como epifania do sexo.
Mas se o
homem é composto de carne e espírito, as forças do animal e da mente entram em
choque. Todos os animais são compelidos à satisfação do impulso sexual, a
partir de leis ditadas exclusivamente pela força da mãe natura. Os homens põem os
poderes do espírito para combater o instinto natural da sua condição biológica.
Da
ambivalência nasce o sentimento de culpa — “maldizem ter fome, enquanto comem”
— uma vez que a inteligência é uma força abstrata que tenta domar a correnteza
concreta da carne.
Se o
primeiro verso do poema de Capinan evoca a luxúria, os dois seguintes, que
analisam a culpa aí contida, fundem a sexualidade com a gula, um pecado capital
muito combatido e regiamente praticado pelo clero medieval e das épocas
seguintes. A analogia entre os dois “pecados”, sugerida pelo poema, une os
prazeres da cama com os prazeres da mesa, fundamente interligados na mundo
psíquico.
Mas esses
três versos de “Compreensão de santo” nos remetem a muito mais, enquanto o
espaço aqui se encerra, sem que possamos falar de todo o poema. Resta-nos
sugerir ao leitor a sua própria reflexão.
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Poesia
engajada. Artigo crítico sobre Inquisitorial; poemas, de José Carlos Capinan. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1995. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 6 mar. 95, p. 5.
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