PESCADOR
DE PALAVRAS:
ARTE E OFÍCIO
Um romance de ação e
suspense. Assim poderia ser definido este livro de J. Gualberto Rocha, se o
rótulo não implicasse numa leitura demasiadamente simplista. A fórmula inicial
para a construção do texto é esta. Muito próxima da estrutura da trama dos romances
policiais. Por isso mesmo, a notável agilidade da escrita e a capacidade do
livro de manter o leitor preso até a última página.
A circularidade da trama e
da escrita de A décima segunda casa
revela o domínio da arte e do ofício de bem contar uma história.
Como o prazer da leitura é o
objeto essencial para quem não gosta de se torturar, todo autor que ambiciona
produzir um bom livro não deve perder de vista que a leitura é como o hábito de
ir ao cinema, ou de ouvir música: uma fonte de prazer. Fora daí é coisa para
intelectual romântico. Ou masoquista, para ser mais incisivo.
Isto não quer dizer que o
texto literário é construído a partir de esquemas prévios ou de recursos
fáceis. Quer dizer apenas que deixar à vista complicados diagramas, escoras e
andaimes que acompanham o processo de construção da obra não assegura a excelência
do resultado. Há quem confunda aparência de complexidade com qualidade
artística, quando esta última pode estar presente em soluções simples. O texto
que esconde as dificuldades do seu tecido e mostra-se como rio fluente tem a
seu favor uma qualidade essencial: tornar acessível o que é complexo.
Tornar complexo o acessível
é um exercício pouco saudável, mas que goza de algum prestígio. Afinal, as
neuroses de estimação existem para ser cultivadas por quem delas necessita.
A propósito, o herói da
narrativa de A décima segunda casa é
uma destas figuras torturadas pelas patologias do espírito. O protagonista e
narrador, que nos apresenta o relato em primeira pessoa, é um escritor
iniciante, um funcionário de uma estatal, ou um burocrata paranóico. Mas o
desconforto experimentado pelo personagem no seu cotidiano não é estendido ao
leitor. Lê-se com prazer e proveito os tortuosos caminhos do herói sem nome
deste romance.
Embora sejam trazidas para o
corpo da narrativa as fantasias do protagonista, através de uma montagem
onírica de sentenças e situações, o leitor não experimenta o desprazer eventualmente
provocado pelo contato mais íntimo com uma personalidade paranóide. Neste caso,
é a técnica da condensação e do deslocamento, já identificada por Jacques Lacan
como análoga aos recursos da linguagem poética, que permite ao autor não
aproximar o seu texto da simples imitação do discurso do neurótico. Pontos como
este revelam o domínio da escrita ficcional.
Mas por que o herói não tem
nome? Ou, pelo menos, por que o seu nome não aparece em nenhuma das páginas da
narrativa?
J. Gualberto Rocha constrói
o seu livro a partir do discurso do protagonista, que é o narrador da história.
A partir da ótica deste personagem é que temos acesso à trama. Daí, a
ambivalência de sentido e de situações. Daí também a pergunta: estamos diante
de fatos envolvendo os personagens da história, como corrupção numa empresa
estatal, homicídio, rapto e tráfico de crianças, ou tudo não passa de fantasias
de um paranóico?
Mais ainda: o protagonista
de A décima segunda casa está
escrevendo um livro, cujos trechos mostrados são os mesmos do romance que
lemos. Obra e personagem se confundem, da mesma forma que o narrador insiste na
relação entre o manuscrito do seu livro e a sua vida. Ela pode se acabar no
ponto final do texto.
Nas diversas situações em
que deveria dizer o seu nome, o herói escorrega em cuidados e precauções, como
no diálogo com a funcionária que o surpreende sentado numa carteira que não era
a da sua sala, após o expediente. Virando o jogo, é ele quem questiona:
“— Se eu precisar falar de
novo com você, como é o seu nome? — perguntei já dentro do elevador.
— Marilza. E o seu?
A porta do elevador se
fechou.”
Aí, é o acaso ou o narrador
que vem em socorro de si mesmo, enquanto personagem. A partir da dificuldade do
herói de responder a qualquer pergunta sobre si, o narrador constrói todo o
texto mantendo o seu nome incógnito. Em outra situação, quando dr. Raimundo
interrompe a conversa entre Dona Angélica e o nosso herói, o narrador se vale
de um artifício que parece absolutamente natural para que se saiba a quem o
recém-chegado se dirige. Mas, neste, ou em outros momentos, tudo é feito para
manter o seu nome desconhecido. É o olhar do falante na direção do interlocutor
que preserva o não dizer o nome:
“— Eu não vou participar do
seminário, após o almoço — ele disse olhando em minha direção. — De qualquer
forma, gostaria de conversar com o senhor quando o seminário acabasse.”
Veja-se ainda este momento
do livro em que outro personagem interrompe a fala do herói para manter o seu
segredo:
“— Eu não sei se foi com a senhora que eu
conversei hoje pela manhã ao telefone, eu sou...
— Eu sei quem é o senhor —
me respondeu a secretária do chefe do Departamento de Pessoal. — Dr. Ademir já
vai atendê-lo. O senhor pode se sentar.”
O título do romance de J.
Gualberto Rocha, A décima segunda casa,
remete a uma compreensão do tipo de personalidade a partir do mapa astral.
Acredita-se que a presença do sol na décima segunda casa faz com que os
nascidos nesta fase sejam marcados por um sentimento de perseguição. Nosso
herói sem nome é um típico paranóico. Ele vive com os sentidos apurados e
vigilantes de tal modo que é capaz de perceber sempre quando é observado ou
seguido.
Mas a montagem da
personalidade doentia do herói não é ingênua ou inverossímil. Pelo contrário, o
autor move-se com extrema cautela e precisão, de modo a não carregar em tintas
desnecessárias. Ele certamente observou e compreendeu, como um verdadeiro artista
deve compreender, os meandros do mundo do sujeito. Não se trata de
psicologismo, o que esteve em moda na literatura, mas de uma capacidade de
percepção daquilo que não é habitualmente percebido pela maioria das pessoas.
Desde o Renascimento, os
artistas procuram assentar a sua invenção em um conhecimento científico da
realidade. Mesmo tendo a seu favor o verossímil, em confronto com o verdadeiro,
o artista não descarta o conhecimento das diversas matizes da realidade, como
meio de construir a verossimilhança.
Quando os pintores do século
XVI seguiam lições de anatomia eles queriam plasmar em seus quadros a verdade
do corpo humano. Quando o autor de A
décima segunda casa estuda com atenção os descaminhos da vida psíquica ele
quer plasmar no romance a verdade do homem como sujeito.
É isso que faz J. Gualberto
Rocha. Seu romance nos põe diante de uma realidade posta diante de outra
realidade. Assim como no livro, o romance do protagonista se insere no romance
que lemos, resvalamos entre realidade e criação, entre fato e fantasia. O jogo
entre a ficção e a realidade é análogo ao jogo entre a vida e o delírio.
Por trás de um texto montado
para ser lido com interesse e atenção, são tecidas as redes de um pescador de
palavras.
J. Gualberto Rocha. A Décima Segunda Casa; romance. Rio de
Janeiro, Rocco, 1994. | Pescador de palavras:
ofício e arte (artigo de crítica literária). Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 5 dez. 94, p. 5.
Leitura Crítica é
publicada todas as segundas-feiras, na página 5 do segundo caderno de A TARDE. Correspondências
para esta coluna: Rua Alagoinhas, 256/101. CEP 41.949-629, Salvador, Ba.
Telefone 245-1420.