Um mundo
em fragmentos
A
obra de Hermilo Borba Filho, escritor pernambucano dos mais conceituados, é
pouco conhecida fora do seu estado natal, embora o nome do autor seja bastante
respeitado. Companheiro de aventuras intelectuais de Ariano Suassuna, Hermilo
é responsável pelo trabalho coletivo de construção de uma dramaturgia regional
e, principalmente, de uma consciência estética comprometida com a cultura
popular. O movimento Armorial – com resultados criativos na literatura, na
música e em outras artes – está intimamente afinado com o pensamento artístico
de Hermilo.
Estes
fatos levaram o nome do autor a merecer consideração, tanto entre seus pares,
quanto junto a um pequeno público. Mas sua obra continua de difícil acesso, já
que alguns livros circularam quase que somente em Pernambuco. Em boa hora a
Mercado Aberto, de Porto Alegre, resolveu reeditar alguns romances deste autor.
Inicialmente lançou Margem das
lembranças e, em seguida, A porteira
do mundo, ambos em segunda edição.
* * *
A porteira do mundo
é um romance que entrelaça fatos biográficos e memória com a vida política do
país, a partir dos seus reflexos no Recife. O Estado Novo, as restrições à
liberdade, a Segunda Guerra Mundial com grupamentos de soldados americanos
sediados em Pernambuco, servem de fundo à história pessoal do autor reescrita
como ficção. Ou associada a fatos ficcionais. Hermilo junta memória e ficção
neste romance, entrelaçando com fatos imaginários fatos da sua vida e da sua
geração. O Teatro do Estudante de Pernambuco e o Teatro Popular do Nordeste,
para quem conhece a história destes importantes movimentos artísticos, estão
presentes nas peripécias do romance e do seu protagonista.
O
título do livro nos remete, plurivocamente, ao abrir-se de situações e especialmente
às designações populares para as partes do corpo feminino. No interior de
cidades da Bahia, o útero é chamado de “a dona do corpo” e, em situações de
parto, a porteira do corpo abre o mundo para a criança.
O
leitor adentra A porteira do mundo
com um pé no mundo real e outro no imaginário. Como se estivesse sempre indo e
voltando pela mesma porteira. A narrativa de Hermilo é de um escritor que sabe
buscar sua expressão com propriedade, mas o uso alegórico da linguagem nem
sempre é bem resolvido.
Ao
passar da narrativa comprometida com o realismo social, que a vida política do
narrador impõe, para a narrativa alegórica com uma intencional busca do
fantástico, o texto parece menos convincente. Alguns narradores habitam
naturalmente o fantástico, outros passam para esta categoria de estranhamento
com um certo esforço, com sensível prejuízo ao fluxo narrativo.
Se
um Gabriel García Márquez caminha naturalmente, pisando os caminhos cruzados
do fantástico ou do maravilhoso com a realidade mais comezinha, o mesmo não
ocorre com alguns escritores brasileiros que se aventuram por esta importante
vertente da narrativa do nosso continente.
Parágrafos
extensos, ocupando, às vezes, algumas páginas estão dispersos nos capítulos do
livro, criando um pouco de monotonia. Mas, em seguida, a agilidade da narrativa
de Hermilo Borba Filho segura o leitor para não soltá-lo mais. Alguns episódios
fragmentários que constituem a arquitetura da obra são especialmente
divertidos. Uns pela natureza das situações narradas, outros claramente pelo
modo de narrar. É aí que mais nitidamente se conhece o escritor maduro e senhor
do seu ofício.
Em
muitos escritores os bons momentos de leitura vêm como se por acaso, ao sabor
dos fatos relatados, em outros, estes momentos são construídos com a
consciência de um técnico que estrutura o seu projeto.
Diferentemente
das atividades exatas, a arte surge tanto do saber fazer, da técnica mais
apurada, ou do artesanato, quanto de inexplicáveis clarões de consciência, por
entre o obscuro caminho inconsciente. Assim, um iniciante consegue escrever um
bom livro, mesmo que lhe falte o domínio da arte literária. É o que alguns
chamam de talento artístico, de sensibilidade. Leitura de relâmpago cifrado que decifrado, nada existe, conforme o
sentido que aqui distorço das palavras de Drummond. Mas escritores como Hermilo
Borba Filho são oficiais do seu ofício. O saber fazer e a imaginação se
conjugam para passar do artesanato à arte. Do fazer bem feito à imaginação
luminosa.
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Um mundo em fragmentos; artigo crítico sobre A
Porteira do Mundo; Romance. Porto Alegre, Mercado Aberto. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 19 ago. 96, p. 7.